quarta-feira, novembro 30, 2011

alfazema






Todas as noites, antes de me deitar, eu fico nua e passo uma folha de alfazema no corpo. Separo o dedal, as agulhas, os fios e o cetim e começo a remendar os vestidos que vou usar para você. É vestimenta antiga, vem lá de longe, meu tempo de mocinha. Em alguns, eu já trabalhei tanto que eles até parecem novos. Tudo pra te fazer feliz. Todas as noites, depois do perfume, eu abro a porta do quarto. Você entra de mansinho, aponta para um daqueles vestidos, eu fico bem bonita, nós saímos de mãos dadas e vamos comer algodão doce na frente da igreja do Bom Jesus. Todas as noites eu faço de conta que você não me deixou. Então para tudo, para o relógio, a respiração, o coração. Até o tempo para, meu amor, esperando que, se um dia voltar mesmo, você não note que essas roupas escondem tantos buracos dentro e fora de mim.

(Texto de Almir Feijó)

terça-feira, novembro 29, 2011

schneebett


 


Augen, weltblind, im Sterbegeklüft: Ich komm,
Hartwuchs im Herzen.
Ich komm.

Mondspiegel Steilwand. Hinab.
(Atemgeflecktes Geleucht. Strichweise Blut.
Wölkende Seele, noch einmal gestaltnah.
Zehnfingerschatten — verklammert.)

Augen weltblind,
Augen im Sterbegeklüft,
Augen Augen :

Das Schneebett unter uns beiden, das Schneebett.
Kristall um Kristall,
zeittief gegittert, wir fallen,
wir fallen und liegen und fallen.

Und fallen:
Wir waren. Wir sind.
Wir sind ein Fleisch mit der Nacht.
In den Gängen, den Gängen.

(Paul Celan, Sprachgitter, 1959)



LEITO DE NEVE

Olhos, cegos do mundo, no sopro amortalhado: eu venho,
Coração aço-expandido,
Eu venho.

Espelho lunar, abismo vertical. Queda.
(Gelâmpada embaçada de hálito. Sangue em estrias.
Alma finda em nuvem, figura ainda quase nítida.
Sombra contorcida de dez dedos)

Olhos, cegos do mundo,
Olhos no sopro amortalhado,
Olhos olhos:

O leito de neve sob nós dois, o leito de neve.
Camada após camada,
Cristais na trama profunda do tempo, nós caímos,
Nós caímos e deitamos e caímos.

E caímos:
Nós éramos. Nós somos.
Somos uma só carne com a noite.
Nas passagens, nas passagens.

(Tradução - meia-boca - via traduções francesa, italiana e espanhola: Patricia Smaniotto)

sábado, novembro 26, 2011

escuta clandestina



Tenho algo pra te contar, uma coisa inusitada que  aconteceu comigo hoje, agorinha mesmo.

Estava trabalhando na tradução que tenho que enviar para a França nesta madrugada. No quarto, o celular tocou, berrando desesperadamente. Era um amigo meu, cuja lembrança me acompanhou o dia inteiro insidiosamente, invadindo meus pensamentos sem ser chamado, feito formiguinhas visitadeiras.

Quando vi o nome no visor do celular, sorri aquele sorriso de segredo e de magia que nasce quando percebemos que o Universo parece estar conspirando a favor de algo que nem sabemos o que é ainda. Enfim, para resumir, o telefonema desse amigo parecia um caso de telepatia explícita.

Atendo e digo alô. Para meu espanto, ele não responde. Tento de novo, mas ele não fala comigo, fala com outra pessoa (na rua?). Espero, talvez ele esteja pegando o troco de alguma coisa e já vai falar comigo.

Mas não: percebo que ele não sabe que me ligou literalmente sem querer. Não resisto a ser écouteuse de sua trajetória pela rua: é como se eu estivesse no bolso de Leopold Bloom na velha Dublin.

Meu coração bate forte no peito ao pensar que ele vai flagrar a minha indiscrição a qualquer momento. Mas ainda assim não resisto: acompanho seus passos na rua, ouço quando alguém pergunta sobre um hotel (será ele quem o procura?), depois escuto sua voz dizendo, daquele jeito lindo e apaixonado dele, que "só há inverno e verão; estamos no quinto mês do inverno". Um outro homem, com sotaque nordestino, retruca: "fazia 36 graus quando eu saí de lá".

Ele volta a caminhar. Depois parece abrir uma porta e, então, escuto barulho de água: louça sendo lavada? Ele resmunga alguma coisa para si mesmo e eu aqui na minha casa sorrio um sorriso de Monalisa, deliciada por estar com ele sem que ele o pressinta.

Mas, de repente, me dou conta que em algum momento ele vai perceber. Vai tirar o celular do bolso e ver que me chamou sem saber - e que eu fiquei à escuta dos seus movimentos. Fico apavorada, não quero ser surpreendida, mas ainda resisto a desligar.

Então, meu filho aparece e quer saber por que estou com este sorriso bobo na cara. Largo o celular aberto na cama e saio do quarto dizendo que não é nada. Volto quando me dou conta de que ele vai pegar o celular. Dito e feito: "quem é esse cara?" Arranco o celular das mãos dele e me escondo no escritório.

Ouço com a respiração suspensa, para saber se o meu amigo se deu conta da minha escuta clandestina. Não, ainda não. Então, me sinto desconfortável e faço o gesto final, encerrando o passeio que fizemos juntos sem que ele soubesse. Olho o visor: durou 18 minutos o nosso passeio, eu no bolso dele. 18 como o dia do seu aniversário.
 
(03/10/2011)

terça-feira, novembro 01, 2011

la francesa



  • Una mujer inteligente.
    Una mujer hermosa.
    Conocía todas las variantes, todas las posibilidades.
    Lectora de los aforismos de Duchamp y de los relatos de Defoe.
    En general con un auto control envidiable,
    Salvo cuando se deprimía y se emborrachaba,
    Algo que podía durar dos o tres días,
    Una sucesión de burdeos y valiums
    Que te ponía la carne de gallina.
    Entonces solía contarte las historias que le sucedieron
    Entre los 15 y los 18.
    Una película de sexo y de terror,
    Cuerpos desnudos y negocios en los límites de la ley,
    Una actriz vocacional y al mismo tiempo una chica con extraños rasgos de avaricia.
    La conocí cuando acababa de cumplir los 25,
    En una época tranquila.
    Supongo que tenía miedo de la vejez y de la muerte.
    La vejez para ella eran los treinta años,
    La Guerra de los Treinta Años,
    Los treinta años de Cristo cuando empezó a predicar,
    Una edad como cualquier otra, le decía mientras cenábamos
    A la luz de las velas
    Contemplando el discurrir del río más literario del planeta.
    Pero para nosotros el prestigio estaba en otra parte,
    En las bandas poseídas por la lentitud, en los gestos
    Exquisitamente lentos
    Del desarreglo nervioso,
    En las camas oscuras,
    En la multiplicación geométrica de las vitrinas vacías
    Y en el hoyo de la realidad,
    Nuestro absoluto,
    Nuestro Voltaire,
    Nuestra filosofía de dormitorio y tocador.
    Como decía, una muchacha inteligente,
    Con esa rara virtud previsora
    (Rara para nosotros, latinoamericanos)
    Que es tan común en su patria,
    En donde hasta los asesinos tienen una cartilla de ahorros
    y ella no iba a ser menos,
    Una cartilla de ahorros y una foto de Tristán Cabral,
    La nostalgia de lo no vivido, .
    Mientras aquel prestigioso río arrastraba un sol moribundo
    Y sobre sus mejillas rodaban lágrimas aparentemente gratuitas.
    No me quiero morir, susurraba mientras se corría
    En la perspicaz oscuridad del dormitorio,
    Y yo no sabía qué decir,
    En verdad no sabía qué decir,
    Salvo acariciada y sostenerla mientras se movía
    Arriba y abajo como la vida,
    Arriba y abajo como las poetas de Francia
    Inocentes y castigadas,
    Hasta que volvía al planeta Tierra
    Y de sus labios brotaban
    Pasajes de su adolescencia que de improviso llenaban nuestra habitación
    Con duplicados que lloraban en las escaleras automáticas del metro,
    Con duplicados que hacían el amor con dos tipos a la vez
    Mientras afuera caía la lluvia
    Sobre las bolsas de basura y sobre las pistolas abandonadas
    En las bolsas de basura,
    La lluvia que todo lo lava
    Menos la memoria y la razón.
    Vestidos, chaquetas de cuero, botas italianas, lencería para volverse loco,
    Para volverla loca,
    Aparecían y desaparecían en nuestra habitación fosforescente y pulsátil,
    Y trazos rápidos de otras aventuras menos íntimas
    Fulguraban en sus ojos heridos como luciérnagas.
    Un amor que no iba a durar mucho
    Pero que a la postre resultaría inolvidable.
    Eso dijo,
    Sentada junto a la ventana,
    Su rostro suspendido en el tiempo,
    Sus labios: los labios de una estatua.
    Un amor inolvidable
    Bajo la lluvia,
    Bajo ese cielo erizado de antenas en donde convivían
    Los artesonados del Siglo XVII
    Con las cagadas de palomas del Siglo XX.
    Y en medio
    Toda la inextinguible capacidad de provocar dolor,
    Invicta a través de los años,
    Invicta a través de los amores
    Inolvidables.
    Eso dijo, sí.
    Un amor inolvidable
    Y breve,
    ¿Como un huracán?,
    No, un amor breve como el suspiro de una cabeza guillotinada,
    La cabeza de un rey o un conde bretón,
    Breve como la belleza,
    La belleza absoluta,
    La que contiene toda la grandeza y la miseria del mundo
    Y que sólo es visible para quienes aman.

    (Roberto Bolaño)