sábado, dezembro 31, 2011

2012



sexta-feira, dezembro 30, 2011

desenlace


Vínculos, Dario Ortiz (Colômbia)


Amor é drama quando há ruptura
lenço de sangue na viagem súbita
lágrima de sal moído em terracota
chá de fel como exemplo de amargura

Vou partir, pastora, já estou pronto
saio da roda clara do teu manto
perco novamente o que me toca
nesta estação eterna de martírio

Não é justo atribuirmos ao romance
o que pertence ao desenlace
entre o sonho louco e o expediente

Nascemos com vocação do sentimento
e exercemos sem medir retorno
o que nos faz melhor e escapa sempre

Nei Duclós


saltos em cavalos selvagens




Há três grandes cavalos:
um a calejar-me as mãos,
outro triste e revolvido;
um a forçar-me a língua,
outro a vomitar ciência
e ainda um outro rijo.

Górgonas nascidas em boa hora,
um cavalo para um olho (e outro que não chora)
torturam o que sobra de meu ocidente.
Presos no quarto de Jade,
o mais selvagem me engolirá a soberba
e, diminuída, seremos duas cabeças.

Camila Ribeiro

quinta-feira, dezembro 29, 2011

las piedras y las palabras



Al mundo no le hacen falta las palabras. Sabe pronunciarse
en rayos de sol, en hojas, en sombras. Las piedras del camino no son menos reales por yacer innumerables y sin catalogar. Las hojas hablan con soltura el idioma de ser y nada más.
Un beso es un beso completo aunque ninguna palabra lo diga.
Y una palabra lo convierte en algo más pequeño o en otra cosa -
indebido, casto, rutinario, conyugal, disimulado.
Aun llamándolo beso delata la ansiedad de las manos
que tantean la piel o se abrazan a un hombro, la lenta inclinación
del cuello o la rodilla, el contacto de dos lenguas en el silencio.
Pero las piedras son menos reales para quienes no son capaces
de nombrarlas, de leer las mudas sílabas enterradas en el sílice.
Ver una piedra roja es menos que verla como un jaspe -
cuarzo metamórfico, pariente del pedernal que los Kiowa
ilaron para sus flechas. Nombrar es conocer y perpetuar.
La luz del sol no precisa aprobación cuando atraviesa los nubarrones
y unge con su claridad las hojas y las rocas, evaporando luego
cada gota cristalina para devolverla a las nubes que la engendraron.
La luz del día no precisa elogios, y sin embargo siempre la elogiamos -
es superior a nosotros y a todas las palabras etéreas que logramos reunir.

Dana Gioia

quarta-feira, dezembro 28, 2011

o amor quer abraçar




O amor quer abraçar e não pode.

A multidão em volta,

com seus olhos cediços,

põe caco de vidro no muro

para o amor desistir.

O amor usa o correio,

o correio trapaceia,

a carta não chega,

o amor fica sem saber se é ou não é.

O amor pega o cavalo,

desembarca do trem,

chega na porta cansado

de tanto caminhar a pé.

Fala a palavra açucena,

pede água, bebe café,

dorme na sua presença,

chupa bala de hortelã.

Tudo manha, truque, engenho:

é descuidar, o amor te pega,

te come, te molha todo.

Mas água o amor não é.


Adélia Prado

el corazón




Cada vez que se escribe un poema
tienes que hacerte un corazón distinto,
un corazón total,
continuo, descendiente,
quizás un poco extraño,
tan extraño que sirve solamente
para nacer de nuevo.

Luis Rosales

segunda-feira, dezembro 26, 2011

despedida





agora, finda a paixão,
você tem gosto de corte,
de morte sem razão.

teu olhar não se refugia mais
nos meus pensamentos,
nem meu amor se alimenta
dos bons momentos.

agora, tudo é deserto

sem miragens,
onde caminho rumo ao mar.

ali estarão as novas ondas,
a vida em broto,
a tempestade fresca.

ali será outra vez desperto
o coração adormecido,
o corpo desejoso de amar.

ali, haverá outras sendas,
um olhar com novas imagens,
uma paixão que a alma refresca.

o ano termina e a tua lembrança
já é questão de sorte,
conseguir resgatar um retalho
do que foi vivido.
 
porque o amor, meu querido,
nem sempre dança
conforme a música.
às vezes, tudo que resta
é apenas silêncio.

quarta-feira, dezembro 21, 2011

o eterno retorno


me lembro bem, eu já fui um deus
daqueles que moviam mundos e fundos
bastava rir para ver tudo florir
mas aqueles que eu chamava de meus
aqueles que deveriam ter fé
foram virando as costas
e, sem mais nem menos, me largaram a pé
sem perguntas e sem respostas

eu sabia que a sensação de estar só
como tudo nesse mundo
um belo dia, retornaria ao pó
e assim me tornei um vagabundo
um inútil pária das estrelas
um monumento ao nada que sirva
um sinônimo de ovelha
não de pastor ou cristo ou shiva

o mundo era meu, estava escrito,
no entanto, não tomei posse
e nem deixei o bem dito pelo maldito
mas se a luz é sombra até que se mostre
encontrei no breu o farol da volta
a poesia me pegou na veia
e, com mil poetas como escolta,
voltei à vida com a caneta cheia!

antonio thadeu wojciechowski

o próprio...

terça-feira, dezembro 20, 2011

conto de natal




Você está certa. Vistas daqui, da janela deste quarto de hospital, as pessoas lá embaixo parecem bonecos de neve. Solitárias estrelas sem brilho, você comparou certa vez - personagens de uma abstração sobre o silêncio e a incomunicabilidade. E Nova Iorque lembra de fato um bolo de açúcar. Acorde, meu bem. É 25 de dezembro de 2002, seu aniversário. Uma amiga veio visitá-la. Hoje fazendo 36 anos, você é a menina de tranças que está na porta. Antes de partir para o grande Mistério, você estará frente a frente com você.
 
Não se trata de um acerto de contas, a sensação é de conforto, a serena celebração de uma conversa há muito tempo agendada, por isso você está apaziguada, mais doce do que jamais esteve. Tomando-lhe as mãos, a garota tira você da cama. E de repente esta U.T.I. sinistra onde você espera pelos anjos que virão buscá-la transforma-se num parque de diversões.
 
Atônita, a máquina do tempo retroagirá ao Big Bang. Há cores e luzes, como numa gigantesca paleta. É a fertilização. Seres inéditos aparecerão. Elfos, minotauros, querubins. Miles David tocará Kind of Blue. Ute Lemper será a voz em fundo. Sim, o Paraíso. Os sons e a fúria do seu primeiro vagido explodirão nas fronteiras do universo e - olha o medo - você desejará ver tudo começando de novo. Voltará à infância, o refúgio predileto. Então tateará. E, medrosa, se sentirá protegida. Numa fração de segundos, a roda gigante irá misturar seu crescimento, maturidade, fracassos e alegrias. Adeuses e regressos. Amores, desamores, obsessões. Tintas, partituras, aromas. A história da sua vida.
 
E você se sentirá só. Chorará, porque descobrirá que esteve sempre só. Mas rapidamente transitará por universos paralelos e vai encontrar personagens dos seus delírios - famas; cronópios; faunos. E, ainda uma vez, voltará a se esconder na inocência. Voltará tantas vezes que, cansada, e maravilhada, dará um longo, reconfortante suspiro.
 
A menina em seu quarto a ajudará, então, a fazer a descoberta mais importante do seu passeio pelo tempo. A de que você terá sempre, sempre, 14 anos.

(Texto de Almir Feijó)

domingo, dezembro 18, 2011

Kristall


Nicht an meinen Lippen suche deinen Mund, 
nicht vorm Tor den Fremdling,
nich im Aug die Träne.

Sieben Nächte höher wandert Rot zu Rot,
sieben Herzen tiefer pocht die Hand ans Tor,
sieben Rosen später rauscht der Brunnen.

Paul Celan


Cristal

Não procure nos meus lábios tua boca, 
não diante da porta o forasteiro, 
não no olho a lágrima.

Sete noites acima caminha o vermelho ao vermelho, 
sete corações abaixo bate a mão à porta,
sete rosas mais tarde rumoreja a fonte.

Paul Celan

(tradução de Claudia Cavalcanti)



sábado, dezembro 17, 2011

epitáfio



A morte de Ofélia, J. E. Millais



Tenacidade é uma palavra que a descreve bem.
Ela raramente desistia enquanto houvesse a menor esperança.

Mas, após o mais recente golpe de crueldade,
o último de vários desferidos em pouco tempo,
ela finalmente desistiu.

E quando ela desistia, era para sempre.
Era para nunca mais.

Assim, o amor morreu.
Morreu vítima do sadismo de um homem
que não merecia o amor que lhe era ofertado.

Porque o amor definha com a crueldade
dos amantes inseguros e rancorosos.

O amor morreu.
Definitivamente.

Rest in peace.


terça-feira, dezembro 13, 2011

poesiatoda II





foto de Man Ray, 1931


 

tua pele nua
se movimenta imperceptível
como numa escultura
teus olhos lassos
emergem breves no espaço
como partituras
teus traços circunscrevem
escuros e claros
que desfaço
como travos do atraso

então distraio o passo
e doce faço
com os dedos laços
com os beijos favos
com os olhos raios (x)
e gravo num retrato
imenso e baço
o close fugaz e frágil
de um abraço imaginário

(1992)

outros tempos




Era uma vez uma atriz...

(Curso Permanente de Teatro, Teatro Guaíra, Curitiba, 1986)

poesiatoda I



Lee Miller, por Man Ray, 1929

era uma fêmea
efêmera
extemporânea
mãos de
esconde-esconde
sorriso
de vagueza
etérea.
como todas,
fênix
e quimera.

(1990)


Floating, Lee Miller, por Man Ray

 
meu intento
é te levar
pra dentro
te tragar
no vento
te travar
no peito
te manter
atento
até o fim.

(1990)


segunda-feira, dezembro 12, 2011

corpo fechado


Passeio Público, de Belmiro Santos


Sim. Era verdade que ela não sorria. Apenas respirava o sorriso dos outros à sua volta. Ela vivia desse roubo. Nenhum crispar, nenhum sentimento a animar-lhe a alma. Um dia, um homem sentou no banco ao seu lado no parque. Ela fora até lá ouvir os pássaros da manhã, nessa busca infindável de sentido. O homem era jovem, mas não parecia nem novo nem velho; parecia não ter idade. Respirava lentamente, olhando fixamente o céu, as nuvens acima dele. Repentinamente, os olhos se voltaram para a árvore junto a qual ela se recostara. Seu olhar foi direto dentro dos olhos dela, como um raio, uma espada, uma lâmina fina trespassando a alma escondida dentro do seu corpo fechado.

Sem entender direito o que se passava, sentindo-se ameaçada pelo invisível, ela procurou lutar no silêncio que servia de campo de batalha entre os dois. Procurou neutralizar a ameaça. Sorriu. Não um sorriso largo, mas um sorriso tímido, que foi forçado a se esboçar sutilmente no seu rosto. Um esforço enorme escondido nessa sutileza, sentido como se golpes de estilete rasgassem-lhe a boca para cima, na tentativa de vencê-la nessa luta e obter, à sua revelia, ao menos um arremedo de sorriso. Justamente um sorriso, coisa que ela nunca tivera coragem de se permitir.

O homem não se deixou enganar por esse sorriso de artimanha. Nem mesmo piscou. Seu rosto continuou com a expressão grave que apresentava desde o minuto em que a viu pela primeira vez. Seu olhar continuava sendo um raio, uma lâmina afiada, uma faca de trinchar caça. Caça assim como ela.

Ela percebeu o recado telegrafado pelo olhar cortante do homem. Sabia que ele pretendia fazê-la em pedaços, roubar dela todos os sorrisos que ela mesma roubara, até que a ela não restasse mais nada a não ser sorrir seu próprio sorriso. Aquele que ela não conhecia.

Este seria apenas o primeiro passo. Depois viriam as outras torturas, as mutilações que seriam necessárias para esculpir em seu corpo a alma que ela trancara por dentro. Ela sabia que, no dia seguinte, ele estaria ali, naquele mesmo banco, e que estaria olhando o céu novamente, como se estivesse lhe indicando algo que ela deveria descobrir, embora ela não soubesse o que havia a ser descoberto nas nuvens e no azul profundo do céu.

Então, ela se levantou, tomando coragem para passar diante do banco no qual ele permanecia duro e empertigado, com seu olhar atroz e, ao mesmo tempo, irrecusável. De repente, algo cedeu na sua concha, uma quebra, uma rachadura, uma fresta. Um arrepio de medo perpassou-lhe a espinha e o livro que segurava nas mãos caiu no chão, diante dele.

Sem olhar para trás, ela seguiu em frente, no mesmo passo controlado com o qual procurava evitar que ele conhecesse o abalo sísmico que criara no seu centro. Ele recolheu o livro e, sem mesmo olhar o título, levantou os olhos para o céu e estendeu as pernas para a frente, cruzando-as na altura dos tornozelos. A mão direita, autônoma, escondeu o livro no bolso do seu sobretudo, enquanto o homem continuava a olhar o céu distraidamente.

No outro lado do parque, ela seguiu seu caminho. Não estava mais preocupada. Sabia que era tarde para isso. Sabia que ela estaria ali na manhã seguinte, que ele estaria ali na manhã seguinte. Sabia que o seu corpo e o seu ser inteiro seriam atravessados pelos golpes invisíveis e silenciosos da faca de trinchar a caça. Sabia que, depois de ser cortada em mil pedaços, seria devorada. E finalmente, renasceria. Sem concha. Só ela, a parte verdadeira e ainda oculta dela. A única parte que tinha importância. A única que era totalmente ela. Sua essência. Aquela que ela mesma não conhecia. Quem sabe ele até lhe devolveria o livro... Nesse momento, ela sorriu. Ela. Pela primeira vez em toda a sua vida.

(Passeio Público, Curitiba, inverno de 1985)

flores para Marcia Mendes




Teu corpo virou jardim.
Tens todo o tempo para brincar de amor
e gozar o tempo, e possuir o vento.
Agora podes colher,
sem que ninguém te notes,
com tuas mãos de nada ter,
com teus dedos de teclas brancas,
os inesquecíveis miosótis.

Agora já podes tocar:
onde estás ninguém ri
da tua versão de Satie.
O tempo apaixonou-se por ti.
Já não te pode interpretar.
É dor que não mata e nem cura.
A contabilidade da usura.
E mesmo que a inveja não suporte
tens em mim, sempre a brotar,
os imperecíveis miosótis.

(Claudio Mello e Souza)


Marcia Mendes e Maria Bethânia

Há 32 anos, em 9 de dezembro de 1979, morria de câncer, no dia do seu aniversário de 34 anos, a jornalista Márcia Mendes, uma das personalidades mais encantadoras da TV brasileira daquela época. O poema acima é do marido de Márcia.

domingo, dezembro 11, 2011

il fallait souffler - l'âge


Il fallait souffler. Il fallait souffler ton nom. Souffler ton nom.

Dans l’oreille.

Dans les petits trous.

Dans toutes ces choses qui abîment.

Dans l’eau.

L’eau qui coule. Les bras levés. Le soufflé.

Les images du soufflé.

Ton nom. Ton nom.

Ton nom.

Non.

***



Il y a quelque chose là-bas.

Un petit trou. Dommage.

Une tonnerre.

Qui ne s’arrête pas.

Un voeu.

Vol.

Viol.

Volonté.

Sans souffle.

Bracage.

Les bras dans la cage.

L’âge.

Qui ne s’arrête pas.

Blanc âge.

Fracasse.

Un petit trou dans le nid.

Coeur âge.

(Courage.)

Je passe.


(Villefranche sur Mer, Côte d'Azur, mai 2010)

il fallait souffler - o abismo


 Aurore sur Villefranche sur Mer, Jean-Bernard Michel


Não consigo dormir. Não consigo ir dormir. Ando pela casa como um zumbi, como um explorador de algo que não conheço. Eu sei o que procuro nos cantos escuros, no silêncio, no oco da noite. Eu sei, mas não ouso dizer em voz alta. Dizê-lo em voz alta, mesmo sem ser ouvida, seria uma confissão de abandono. De vazio instalado nos vãos todos há tantos anos.

Respiro. Suspiro. O cigarro soltando fumaça, as mãos ocupadas em escavar o abismo em meio às palavras. Respiro. E tudo é vazio, silêncio, a espera sem fim disso que não ouso dizer. Como se dizer fosse uma confissão de abandono. Ou loucura. Ou morte.

Os dedos latejam, tateiam, tentando encontrar em meio ao silêncio a carne que falta.

Ninguém sabe quem sou eu por dentro. No meu silêncio. Nesse silêncio estrangeiro, que é estrangeiro em toda parte, mesmo quando não há estrangeiro ao meu redor.

Ninguém me indaga em meu silêncio. Sou um fio cortado. A linha que me traça até o infinito, intocada. Um salto sem rede, invisível a qualquer olhar.

Onde está o que não ouso dizer?

Miro o abismo que me separa. Em duas. Três, infinitas partes desconexas, redes arrebentadas por dentro e por fora. Calmo como a morte, o silêncio que me envolve. Estou presa nesse silêncio, camisa-de-força dos meus desejos. Grito por dentro e ninguém ouve nem mesmo o sopro desse grito. Mudo. Como a morte, que é mais viva que o mundo.

Caminho sem sair do lugar. Dou voltas ao mundo e ninguém me vê. Sou meu próprio fantasma. E ninguém me vê. Nem eu mesma. Onde estou que não me escuto?

Não há dor, não há nada. Na verdade, o silêncio é tão imenso que nem a dor o atravessa. Sou autista de mim, indiagnosticada.

Vejo minhas mãos e elas não respondem ao que pergunto. Elas não podem responder sobre o outro que me falta. Pelo outro que não sei e sequer conheço.

Arrasto-me de quatro, pornógrafa de mim mesma, virando pelo avesso minhas entranhas como se fossem a pele fresca de um tempo outro.

Tudo que vejo é o sangue translúcido de um túnel não ultrapassado, trilha impressentida que ninguém alcança. Bebo o que sonho, o que desejo, e nunca nunca nunca me satisfaço. Porque bebo o vazio de uma ausência que me esmaga como um muro.

Que muro é esse que construí em torno de mim durante minhas ausências do mundo?

Petit trou que se esgarça como meia rasgada em meio à festa que não aconteceu.

(Villefranche sur Mer, Côte d'Azur, mai 2010)

il fallait souffler - o limbo





Talvez ela contasse a história se alguém lhe perguntasse.

Talvez alguém pudesse lhe entregar a chave dessa porta fechada dentro do seu corpo.

Talvez alguém a levasse até a cena do crime para lhe mostrar o cadáver do que foi vivido e do qual ela é incapaz de se recordar.

Talvez houvesse uma saída se alguém pudesse ver através dela quando ela se senta no banco da frente do ônibus, com suas sacolas de compras, fingindo que é uma pessoa normal, sem nenhuma história, sem nenhum segredo, uma pessoa sem passado como todas as outras que viveram.

Poderia ser o garoto com o patinete, cabelos descuidados, que desce logo à frente. Poderia ser o motorista, enquanto olha pelo retrovisor em dia de greve. Poderia ser a menininha que fala outra língua, incompreensível, e tem os olhos pintados com lápis e rímel. Poderia ser até mesmo o homem bonito que nunca a vê porque ela é invisível aos olhos do novo, agora que o tempo não caminha mais ao seu lado retardando o passo.

Mas não há ninguém. Ela tem vivido invisível como um fantasma vindo do outro lado do oceano. Um fantasma estrangeiro. Ela é invisível mesmo à luz do dia, ainda que seja primavera e tudo brilhe sob o sol.

Ela parece ser feita de ausência, mesmo que esteja presente. E ninguém lhe dirige a palavra. Ninguém a não ser aqueles que estão mais perto da morte e já enterraram o desejo que um dia vibrou.

Ela olhou para o lado tempo demais. E quando voltou a encarar o futuro, ele já era passado. As veias finas em seu corpo eram testemunhas desse passo em falso. Não havia mais o que fazer. Talvez esperar que alguém a visse num vislumbre entre os tempos, nesse limbo onde ela teima em ficar de pé, sem ir para a frente ou para trás.

Ela deixa o telefone tocar, sabendo que quem está do outro lado da linha tem uma imagem irreal de quem procura. Ele já tocou 22 vezes em uma semana, mas ela continua irredutível. Talvez ela devesse atender e trazer para seu silêncio o corpo que não conhece. Talvez ele acendesse fogos, talvez iniciasse uma fogueira. Talvez o mar logo ali se levantasse, cobrisse todas as casas e a alcançasse enquanto abria a porta da sua invisibilidade a um desconhecido. Talvez ela se afogasse como um suicídio.

Talvez ela apagasse a luz e conseguisse dormir em meio a tanto barulho no escuro.

(Villefranche-sur-Mer, Côte d'Azur, mai 2010)

sábado, dezembro 10, 2011

alguma poesia


 
morre-se nada
quando chega a vez

é só um solavanco
na estrada por onde já não vamos

morre-se tudo
quando não é o justo momento

e não é nunca
esse momento

(Mia Couto)



 
O que se foi se foi.
Se algo ainda perdura
é só a amarga marca
na paisagem escura.

Se o que se foi regressa,
traz um erro fatal:
falta-lhe simplesmente
ser real.

Portanto, o que se foi,
se volta, é feito morte.
Então por que me faz
o coração bater tão forte?

(Ferreira Gullar)