terça-feira, dezembro 11, 2012

Miss Hitler




Inspirado numa carta astrológica

Era uma vez Miss Hitler. A senhorita em questão era pequena, baixinha, pernas e braços fininhos, cabelinho curto cor de rato, nariz de tucano, voz irritante que não se cansava de ecoar aonde quer que fosse. Tinha um gênio péssimo, daqueles de galinho de terreiro querendo provocar e mandar em todo mundo. Por isso, nas sombras, recebera o apelido de Miss Hitler, o que não era realmente de bom tom, já que, segundo consta, a moça tinha longínquo sangue judeu. Mas deixa pra lá. O que importa saber é que Miss Hitler não passava de uma menina mimada querendo chamar a atenção, embora ela acreditasse firmemente que era uma pessoa (?) forte e capaz de vencer qualquer oponente, não importa em que campo. Só para alimentar um ego que não tinha tamanho. Ela, como Herr Hitler, se achava invencível. Sabe como é, tinha uma incurável síndrome de superhero. É, você leu direito, sim. Superhero. Não super heroína, porque ela não era bem o tipo mais feminino do mundo. Na verdade, era meio andrógina, parecia um menino vestido de mulher. Ou uma menina com jeitão de machinho. Como pode ver, tinha problemas de identidade. Ou não, vai saber. Isso não seria nenhum problema se o machinho não perdesse nenhuma oportunidade de levantar os punhozinhos mequetrefres e a lingüinha afiada que não cortava nem cebola. Era um espetáculo incrível de se ver: aquela pessoinha praticamente inexistente querendo disparar no ar alguns jebs de esquerda (ela é canhota, coisa do demo, diriam os velhinhos que sentavam na venda para tomar cerveja e jogar general) e nocautear o adversário só com um olhar risível de adolescente rebelde. Só rindo mesmo. No fundo, no fundo, era uma revoltada. Tinha sido tão criticada pela própria mãe a vida inteira que agora disparava a língua viperina para criticar todos aqueles que a incomodavam com talentos, experiências e outros quetais que ela não tinha. Intimamente, ela também se criticava o tempo todo, mas jamais, jamais, permitia que o mundo a visse como não-menos-que-perfeita. Todo o problema da vida de Miss Hitler é que ela se acreditava nascida para brilhar. O Tempo lhe mostrou que não, que esse não era o seu destino. Mas não adiantava: ela batia o pezinho de criança (mimada) e exigia os privilégios de um leonino. Inútil: quem nasceu para caranguejo nunca chega a leão. Só lhe restava atacar quem estivesse em volta, na rua, no bar, na escola, no salão de beleza, na oficina de automóveis, em busca de uma mamãe substituta a quem gritar seus disparates. Felizmente ou infelizmente (depende do ponto de vista), sempre havia uma que caía inadvertidamente nesse teatrinho improvisado da sua grandeza e depois não sabia como escapar para as coxias e deixar no palco de segunda o bebê tirano com seus delírios de realeza e seus impropérios sanguinários de Rainha de Copas. Mas, no final, todas as mamães descobriam que não era assim tão difícil meter uma chupeta na boca de Miss Hitler. Bastava ignorá-la da maneira mais contundente. Sabe estátua de gelo? Pois é. Quem está louca para ser um sol brilhando no centro do mundo não suporta baixas temperaturas e tanta imobilidade. E, afinal, o jogo só tem graça (para ela) quando dois jogam, não é mesmo? Pois é, mais uma vez. Você tinha que ver quando isso aconteceu outro dia. O machinho-galinho arrastando acabrunhadamente seu paninho de consolo pelo terreiro, enquanto a mamãe da vez partia para todo o sempre, em direção ao boteco mais distante possível onde, ao lado dos amigos do peito, tomou uma cerveja estupidamente gelada. Nunca desceu tão redonda.  

quarta-feira, julho 18, 2012

os cães dos Infernos



Stop the violence, François Robert, 2009
23 de fevereiro de 2012, Homs, Síria.
A última notícia do dia em La Chamelle era:
Eles jamais se casariam.
 ***
 Tudo sempre se repete. Ciclos dentro de ciclos dentro de ciclos. Ciclos maiores para a humanidade. Ciclos menores para os indivíduos. E, quando menos se espera, você é alcançado pelos cães dos Infernos. Meu pai – um pied-noir, como eram chamados os colonos franceses – os tinha encontrado durante a Guerra da Argélia. Ele se juntara aos argelinos árabes, kabyles e berberes na luta contra a ocupação francesa e pela independência do país onde nasci. Ou seja, tinha virado as costas à França para que eu e muitos outros pudessem deixar de viver uma vida de segunda classe sob o governo de um país que nos desprezava a ponto de nos tornar apátridas quando os nazistas assim o exigiram. Um país padrasto que o envergonhava. Por isso, ele lutou a “guerra das memórias”. Foi morto com um tiro na testa no Massacre de 17 de outubro de 1961, sem chegar a ver o reconhecimento da independência da Argélia ser anunciado por De Gaulle no verão do ano seguinte. Aqui e agora, diante deste homem que traz os cães consigo, tentando proteger com meu corpo a mulher que amo, na esperança de que a carne se transforme em escudo ou carapaça, percebo que estou prestes a morrer. Terei o mesmo destino trágico ou heroico de meu pai, apesar de ser apenas um homem comum. Um homem que fotografa as dores do mundo. Um homem que ama profundamente uma mulher. Um homem que acredita em liberdade. Por ela morreu meu pai, por ela morrerei eu e por ela foi assassinado o maior poeta argelino, Jean Sénac, na capital de meu país, Argel, em 30 de agosto de 1973. Um de seus poemas – que, segundo minha mãe, meu pai recitava apaixonadamente quando eu estava no útero dela – será a última coisa que ressoará nos meus ouvidos:
Este homem trazia sua infância
no rosto como um bestiário
ele amava seus amigos
a urtiga e a hera o amavam

Este homem tinha a verdade
enfiada nas suas mãos unidas
e sangrava

À mãe que queria tirar sua faca
à filha que queria lavar sua ferida
ele diz “não impeça meu sol de girar”

Este homem era justo como uma mão aberta
precipitaram-se sobre ele
para curá-lo para fechá-lo
então ele se abriu ainda mais
e fez entrar a terra nele

Como o impediam de viver
ele se fez poema e se calou

Como queriam traçá-lo
ele se fez árvore e se calou

Como arrancavam seus galhos
ele se fez carvão e se calou

Como escavavam suas veias
ele se fez chama e se calou

Assim suas cinzas na cidade
levarão seu desafio

Este homem era grande como uma mão aberta*.
  ***
 Ele engatilhou o cão da arma e o tiro ecoou por toda parte. A bala incrivelmente veloz se alojou na testa daquele que teria sido meu marido dentro de poucos dias. Ele tinha segurado minha mão no último instante e, na tentativa de me proteger, me ofereceu em sacrifício sua própria vida. Na minha histeria diante de todo aquele sangue, eu pensava sem parar nos presentes que seriam devolvidos, no bolo não partido que seria dado às crianças. Então me dei conta de que um funeral ocuparia o salão do meu casamento. Mas meu amor jamais levaria o talit para o túmulo, nem ouviria a prece do kaddish. A chuva começava a cair lá fora. Lágrimas frias enviadas pelos céus, chorando minha perda. E, junto com os raios e trovões, toda a minha dor se transformava em farpas que me deixavam em carne viva. Teria sido assim, tão terrivelmente doloroso, tão incomensuravelmente aterrador, quando minha avó soube da morte do meu avó em Sobibor, durante a revolta e fuga de prisioneiros de Lager I em 14 de outubro de 1943? Talvez ela nunca tenha sabido. Talvez tenha ido para a câmara de gás muito antes que ele morresse fuzilado nas cercas de arame farpado, com os cães latindo para os seus ossos. Teria ele falado com os cães antes de morrer? Teria ele pedido aos cães para que não o trucidassem, que não lhe devorassem as entranhas, que não tornassem ainda mais completa, indigna e humilhante a aniquilação da sua identidade e da sua existência? Esses pensamentos fora de hora corriam desabaladamente pela minha mente, enquanto a minha própria morte estava sendo preparada. Os trovões que eu ouvira antes eram, na verdade, bombas sendo lançadas por toda a cidade de Homs. O mundo à minha volta estava sendo bombardeado e eu estava aqui, nesta sala no quarto andar de um edifício, entre o corpo morto do meu amado e o olhar feroz de meu inimigo. Rolos de fumaça negra surgiam por todo lado e, nesse momento, eu me ajoelhei, me abracei e recitei um poema de morte para mim mesma. Um poema de Paul Celan, considerado o maior poeta do século XX. Um poeta judeu destroçado pela barbárie nazista a ponto de se suicidar nas águas do rio Sena, em Paris, em 20 de abril de 1970. A ironia: mesmos dia e mês em que nasceu Hitler. Hitler não está mais aqui mas, ainda assim, eu estou diante da morte. E ela me levará aos céus. Literalmente.
 Leite negro da madrugada nós o bebemos de noite
nós o bebemos ao meio-dia e de manhã nós o bebemos de noite nós o bebemos bebemos
cavamos um túmulo nos ares lá não se jaz apertado
Um homem mora na casa bole com cobras escreve
escreve para a Alemanha quando escurece teu cabelo de ouro Margarete
escreve e se planta diante da casa e as estrelas faíscam ele assobia para os seus Mastins
assobia para os seus judeus manda cavar um túmulo na terra
ordena-nos agora toquem para dançar
Leite negro da madrugada nós te bebemos de noite
nós te bebemos de manhã e ao meio-dia nós te bebemos de noite nós bebemos bebemos
Um homem mora na casa e bole com cobras escreve
escreve para a Alemanha quando escurece teu cabelo de ouro Margarete
Teu cabelo de cinzas Sulamita cavamos um túmulo nos ares lá não se jaz apertado
Ele brada cravem mais fundo na terra vocês aí cantem e toquem
agarra a arma na cinta brande-a seus olhos são azuis
cravem mais fundo as pás vocês aí continuem tocando para dançar
Leite negro da madrugada nós te bebemos de noite
nós te bebemos ao meio-dia e de manhã nós te bebemos de noite nós bebemos bebemos
um homem mora na casa teu cabelo de ouro Margarete
teu cabelo de cinzas Sulamita ele bole com cobras
Ele brada toquem a morte mais doce a morte é um dos mestres da Alemanha
ele brada toquem mais fundo os violinos vocês aí sobem como fumaça no ar
aí vocês têm um túmulo nas nuvens lá não se jaz apertado
Leite negro da madrugada nós te bebemos de noite
nós te bebemos ao meio-dia a morte é um dos mestres da Alemanha
nós te bebemos de noite e de manhã nós bebemos bebemos
a morte é um dos mestres da Alemanha seu olho é azul
acerta-te com uma bala de chumbo acerta-te em cheio
um homem mora na casa teu cabelo de ouro Margarete
ele atiça seus mastins sobre nós e sonha a morte é um dos mestres da Alemanha
teu cabelo de ouro Margarete
teu cabelo de cinzas Sulamita**
  ***
quando eu era criança gostava de facas de abrir os bichos junto com meu pai no campo mas quando eu cresci troquei aquelas facas pela arma velha que achei no meio dos destroços da última guerra aquela guerra mais antiga de quando eu era menino porque a arma era mais rápida eu podia mirar a pessoa de longe mirar entre os olhos brincar de alvo com ela e finalmente atirar e ver a bala saindo rápida e entrando na carne quebrando os ossos como a gente fazia com os animais gostava tanto de atirar e também de usar as facas pra destrinchar a barriga da pessoa então eu resolvi que tinha mesmo que usar esse meu dom a serviço do Islã pra acabar com esses estrangeiros que vêm aqui dizer o que é bom pra nós por que é que você está fazendo isso muçulmano vendido ao ocidente impuro pela cama dessa mulher por que está protegendo a judia suja se entrar na minha frente vai levar um tiro bem no meio dos olhos pois meu dedo está coçando zuuumm páááá eu não disse foi ele quem pediu foi ficar na frente dessa judia suja agora vai ser a vez dela essa jornalista que traz o mal vocês não entendem tudo isso é em nome do Islã meu pai dizia que a gente descende da Fidáiyya a gente do sacrifício estes mesmos que os inimigos chamam de Hashishiyya os assassinos sou assassino pelo Islã pra mim só existe o aqui e o agora é onde espero a vinda do último profeta aquele que revelará a mensagem do Islã para toda a humanidade quando finalmente o mundo será o que deve ser mas não se mexa mulher impura não se mexa vou te dar um tiro no meio da testa mas talvez seja melhor sair daqui estou sentindo o cheiro da fumaça para com isso sua judia suja para de chorar não gosto desses jornalistas que só falam mentiras sobre nós nos jornais deles vou matar todos que eu encontrar pela frente que nem esses dois aqui e depois eu estou seguindo ordens de Marja então não tem problema algum estou purificando o mundo e onde eles estavam quando precisei só querem saber de falar mal mas o mal é essa gente de fora que quer mandar na gente eu já perdi quase toda minha família pai mãe irmãos tios primos até minha mulher e meu filho já morreram assassinados todos muçulmanos xiitas com orgulho então agora tenho que cuidar de mim e do meu povo não adianta implorar ianque mentirosa acho que tem alguma coisa acontecendo lá fora logo eles vão acabar com a gente vão mandar uma bomba em cima deste prédio e buuuuummmmmmm você e eu a gente vai morrer na hora despedaçados pedaço de tripa pra todo lado como dos porcos que eu abria com meu pai por isso pode parar de ficar falando isso aí estou engatilhando a arma estou ouvindo os aviões vou mirar entre os teus olhos a bomba está chegando vai ser sangue e carne pra todo lado e eu não estou nem aí a morte liberta zuuuuuummm pááááááá agora você viu e pra terminar judia suja aqui no meu país não tem tempo pra poesia.

O homem aberto, Jean Sénac, tradução minha.
** Fuga da Morte, Paul Celan, tradução de Modesto Carone.



(Publicado originalmente no site
Saturnália Astrologia & Cidade, http://saturnalia.com.br/)

terça-feira, julho 17, 2012

o infindável labirinto da memória


Sadness (Ellen Terry), por Julia Margareth Cameron, 1863
Para minha mãe
Desde menina, ela tinha essa obsessão: guardar a história da sua vida e das de todos que dela fizessem parte. Ela guardava tudo: boletins e livros da infância, diários da adolescência, discos que embalaram seus primeiros romances, caixinhas vazias de bombons, cartas e cartões postais de familiares e amigos, fitas de caixas de presente, bilhetes de namorados, sabonetes de motel, rolhas de vinhos tomados em noites de amor, roupinhas de quando o filho era bebê, entre tantas outras coisas. Mas o que mais a encantava eram as fotografias.
Tudo começou aos nove anos, com a caixa de papelão que tinha encontrado nas coisas da mãe. Ao abri-la, sem querer derrubou todo seu conteúdo no chão e o que viu foi um mar de carinhas em preto e branco, nas mais diversas atividades e situações. Aquele mundo de tantas épocas a fascinou. Continuou revisitando a caixa ano após ano. Havia fotografias de muitos anos antes do seu nascimento, expondo rostos que ela não conhecia. Rostos que sorriam em casamentos, que ficavam solenes em batizados, que pareciam tristes sem saber que estavam sendo observados.
Meninos que brincavam em ruas de terra, outros que deslizavam em tobogãs muitos anos mais tarde. A mãe menina, ainda loira, com as sobrancelhas franzidas. E bem depois, nos anos 60, muito bela num vestido curto. O pai jovem, a avó sem cabelos brancos, os irmãos encapetados numa brincadeira, a irmã de vestidinho e sorriso tímido, ela mesma de tranças e com um par de tênis Bamba coberto de piche.
Era um grande mistério esse da fotografia. Lá estava ela adolescente com as amigas e, mais adiante, sua mãe no baile de formatura aos 17 anos. As duas juntas lado a lado, quase com a mesma idade. A mágica da fotografia embaralhava os tempos e as épocas, tornando contemporâneas – pelo menos ali no chão da sala – a filha, a mãe, a avó. Elas dialogavam na sua alegria, na sua tristeza, no seu abandono, na sua ausência. Porque as três estavam irremediavelmente ausentes daquelas fotos. Afinal, nenhuma das três continuava sendo quem foi.
Mas não importava. Era parte do fascínio. Como os pequenos monóculos com slides dentro, que eram tirados na praia e que hoje não existem mais. Dinossauros minúsculos de outra época não tão distante assim. Enfim. O fascínio pela fotografia – ou melhor, pela capacidade que a fotografia tem de resgatar instantaneamente a memória de um tempo, de uma época, de um momento, trazendo num simples olhar toda a emoção vivida – se tornou uma obsessão realmente estranha para ela.
Estranha porque, não mais contente com os seus álbuns de família, ela se tornou uma caçadora de álbuns de família alheios. Colocou um anúncio numa revista pedindo àqueles que não quisessem mais suas fotografias de família que as enviassem para ela. A fim de disfarçar o inusitado do pedido, dizia que pretendia fazer uma pesquisa antropológica sobre o assunto, embora tivesse apenas 17 anos e não estivesse ainda na universidade.
O anúncio resultou em um único envio da parte de um senhor de mais de 80 anos sem descendentes, que numerou e esclareceu detalhadamente quem eram os fotografados e o que eles faziam. Tanta organização se explicava pela formação militar da família de origem portuguesa. Entre as mais de 80 fotografias, havia muitas do final do século XIX e início do XX, retratando parentes portugueses, alguns às vésperas de partir para a guerra.
Aquilo a comoveu profundamente. Tanto o gesto do homem que não a conhecia, quanto as próprias fotografias, que se tornaram parte do acervo da sua própria família. Até hoje, 30 anos depois, ela as guarda exatamente da mesma maneira que ele as enviou. De vez em quando, ela as tira da caixa e as observa – e, desse modo, acredita estar honrando a confiança do velho militar e mantendo viva a lembrança dele e de sua família. Afinal, enquanto alguém olhar para as velhas fotografias, aquelas pessoas ainda estarão presentes neste mundo.
Mas não parou aí a obsessão dela. Poucos anos mais tarde, ela se casou com o filho de uma espanhola. Esta, por sua vez, era filha de um militante da Resistência Espanhola à ditadura franquista, o qual esteve preso durante 10 anos em um campo de concentração no norte da África. A sogra, nascida durante o bombardeio de Valência em1937, tinha enorme orgulho da história familiar. E, como era de se esperar, ela tinha centenas de fotografias de família.
Um belo dia, a sogra colocou uma caixa enorme sobre a mesa, dizendo que se livraria de uma parte das fotografias. Imediatamente, a nora se eriçou e se postou diante da caixa. Nas horas seguintes saíram dali dezenas de fotos de familiares catalães que remontavam ao início do século XX, antigos postais escritos com caneta nanquim, convites de casamento e aniversário dos anos 50 e 60, imagens de militantes na clandestinidade, outras de pessoas explorando cavernas com cordas e tudo, bebês rechonchudos e uma infinidade de fotografias de todas as décadas do século passado.
Enquanto a sogra fazia uma pilha das fotos rejeitadas, a nora ia separando para si todas aquelas que ela não permitiria que virassem cinzas ou lixo. Ao final da faxina, tinha um novo álbum de família com mais de 50 fotografias, sem falar os cartões postais europeus de antes da Primeira Guerra Mundial, os convites de casamento, as lembrancinhas de bebê, os documentos de identidade da primeira metade do século. A sogra estranhou o interesse da nora, mas também ficou envaidecida com isso. Assim, o novo álbum foi se juntar aos dois primeiros.
Para ela, era quase uma missão: reunir a memória do mundo para que ela não se perdesse. No entanto, nunca mais conseguiu obter novos álbuns de família. A fotografia digital chegou e acabou com a graça e o encanto das caixas cheias de fotografias em preto e branco, dos álbuns de folhas grossas e com molduras, dos porta-retratos na mesinha de canto e das caçadas por baús esquecidos em sótãos, porões, garagens e depósitos. Hoje ela caça suas imagens dos diversos tempos e épocas nos arquivos da internet.
Ao longo dos anos, ela tinha estudado e praticado fotografia. Conhecia muito bem os grandes nomes desta arte, mas havia um nome que sempre a fascinara pela capacidade de captar a vida pulsante em seus modelos de tal modo que, mesmo muitos anos depois de tirada a fotografia, é possível ser completamente envolvido por essa sensação. Trata-se de Julia Margareth Cameron, a primeira fotógrafa britânica, que começou a fotografar somente aos 48 anos e morreu em 1879.
Um dia, vasculhando os álbuns fotográficos eletrônicos, ela encontrou uma imagem de Cameron, tirada 101 anos antes do seu nascimento, que a comoveu tanto quanto os seus álbuns de família: o retrato de uma linda moça de 16 anos com ar triste que parece ainda tão viva que até dói. A moça era Ellen Terry, que se tornaria uma grande dama do teatro. Diante do emocionante impacto dessa presença quase física, quase palpável, mesmo passados 150 anos, ela se perguntou como será o futuro das nossas lembranças na era da imagem em movimento. Que coisa estranha será ver, daqui a 200 anos, as pessoas de hoje vivas e em ação nos filmes de família. Foi então que percebeu que os mortos estarão totalmente despertos no infindável labirinto da memória. Mais despertos do que jamais puderam estar.


(Publicado originalmente no site
Saturnália Astrologia & Cidade, http://saturnalia.com.br/)

segunda-feira, julho 16, 2012

o peso de mil solidões


Nebulosa da Tarântula

Ele entrou pela porta da frente ao mesmo tempo em que corri para a janela e me lancei contra a vidraça. Enquanto flutuava lentamente no ar, junto com estilhaços de vidro e as gotas de sangue, eu podia ver o sol alaranjando o horizonte em mais um fim de dia enviado pelo Universo. Finalmente, meu corpo se chocou contra o topo do plátano avermelhado, uma perna esticando-se toda diante do meu ventre, o joelho colado na testa, a outra perna solta como boneca de pano nos galhos que me flechavam as carnes. Meu olhar paralisado perfurava o chumbo do céu que me cobria e riscava fogos de artifício no breu que se aproximava.

Balancei o lado esquerdo do quadril duas, três, quatro vezes, até que meu corpo se desprendeu e caiu no fundo da água abaixo de mim. Flutuava agora em elemento aquoso, morta como Ofélia. Fui sendo levada até a beirada e ali o que restava das minhas roupas rasgadas se dissolveram. Ergui-me, então, nua e deslizei para a terra firme. Caminhei assim em meio aos vaga-lumes e os trancei nos cabelos e embebi com sua luz minhas feridas. Foi minha primeira morte. A próxima, a definitiva, não seria tão lúcida quanto a primeira.

***

Ninguém soube da minha segunda morte. Ficou perdida entre as pedras e os fósseis. Os cata-ventos sussurravam brincadeiras em meus ouvidos e retalhos de estrelas mergulhavam no fundo dos meus olhos que nada viam. Minhas pernas tinham se tornado feixes de trigo e os tornados acima de mim nasciam das minhas mãos de gelo. Os soldados marchavam sobre minha ausência e toda espera era eterna. Era sempre tempo de guerra e a morte ria um riso pesado como o peso de mil solidões.

Neste leito de chumbo, eu não tinha mais as tranças, mas elas insistiam em derramar-se em torno de mim como se eu ainda fosse uma menina ou uma princesa. Na minha janela subterrânea, não havia vidraças, tampouco paisagens, menos ainda a promessa de um príncipe encantado a me esperar no altar. Dobrei-me em duas, como se já fosse o passado enterrado de mim mesma, suspirei e esqueci totalmente quem eu era. Para todo o sempre.

***

Porém, em meio às minhas duas mortes, a memória do tempo se apresentou:

“Há cinco dias, Plutão ganhou sua quinta lua.

Há doze, encontraram o Bóson de Higgs, a Partícula de Deus.

Há exatos 67 anos, a primeira bomba nuclear, Trinity, foi lançada no México. Logo depois foi a vez de Little Boy em Hiroshima e de Fat Man em Nagasaki.”

Fiquei à espera do brilho magnífico de 60 luas cheias que emite a Nebulosa da Tarântula, mas ele não veio. O que veio foi o sopro.

***

Eu gosto do sopro. Somos um sopro. A vida é um sopro. A morte é um sopro. E no sopro há sempre movimento, nenhum tédio ou terror debaixo do pó. Apenas movimento. Volutas. Redemoinhos. Mares a varrer. Frio e calor se revezando em canais aéreos. Incenso. O trago de um xamã. Até chegar ao espaço, onde tudo é silêncio e vislumbro, transformados em milhões de partículas, as luzes boreais e os buracos negros. Descubro que não vamos ao pó, mas ao fim do tempo, essa unidade ilusória que nos priva de todos os mistérios.

***

No fim, as vozes das estrelas cantaram para espantar toda solidão.

Ali, no Infinito, onde a morte não pode mais rir seu riso de chumbo.



(Publicado originalmente no site
Saturnália Astrologia & Cidade, http://saturnalia.com.br/)

domingo, julho 15, 2012

nem anjo, nem demônio


Carnaval em Cádiz, 2010

Havia dias em que ela insistia em ser eu. Não adiantava nada sussurrar o contrário: ela se armava com as roupas que eu gosto, passava o batom que eu tinha comprado em Paris, saía pela rua espalhando dobrões de ouro (os meus, é claro). Não que eu me importe muito. É bom sair desse lugar apertado e quente de vez em quando. Mas às vezes me sinto roubada. Sim, roubada. Ela me rouba a personalidade e todos os seus enfeites e, depois, calmamente toma um suco de maracujá ali na esquina, pouco-se-me-dando se o nome da fruta é, para mim, fruit de la passion, que é mais chique. Ou melhor, chic. Talvez porque ela goste mais de falar espanhol, já que tem enorme pendor para o teatro dramático del Siglo de Oro. Mas eu prefiro mesmo é ver o Jack Sparrow no escurinho.

 De qualquer modo, eu fico ressentida com o roubo: afinal, sou eu quem gosta de vadiagem, lua cheia e caramanchão. Ela, ela mesmo, gosta é de melancolia, velas e caraminholas. Tá, vamos dizer que eu sou a malvada, como a Bette Davis naquele filme. Mas sou malvada com razão, não gosto quando ela fica boazinha demais. Parece um mar de chantilly se esparramando e grudando em todo mundo. E levando na cabeça, o que me deixa ainda mais furiosa. Dolorida por tabela. Mas tudo bem se ela vai dançar de vez em quando, isso eu acho ótimo pro esqueleto, melhor que ficar em casa semana após semana lendo Clarice da forma errada. Se é que tem uma forma certa.

Tem gente que pensa que somos gêmeas. Eu dou risada. Eu sou mais velha que ela – ou mais nova, não lembro mais. Mas gêmeos mesmo, só os seios. E que importa? A verdade é quase nunca nos veem juntas. (Sabe como é, incompatibilidade de gênios.) Isso sim é um acontecimento raro: só uma vez alguém conseguiu nos ver de braço dado. Foi no carnaval de Cádiz. Perfeito, já que eu gosto de carnaval e ela de flamenco. Só não gostei que era de dia e eu sou da noite. Resolvi não esquentar a cabeça nem os cornos. Mas como ninguém “pula carnaval” por lá, resolvemos tomar um porre. Ou melhor, eu tomei o porre (chic) de Tapeña Garnacha 2009 – já ela ficou só nas tapas de jamon y chorizo. Ou seja, uma pobreza. (Odeio quem conta trocado. Em euro, ainda por cima!)

Tomado o porre e devorada as tapas, era hora de fazer tudo de novo. Porre, tapas, porre, tapas, porre, tapas. E assim se dava a volta por toda a cidade, “pulando” o carnaval de Cádiz. Não me entenda mal, foi muito divertido – e, quanto a isso, nós duas concordamos. Mas voltando ao acontecimento raro que lá se deu. Éramos um bando de amigos rodando pelas ruazinhas antigas em busca de música. O tempo foi passando, a manhã foi passando, a tarde foi passando, e nada de música que não fosse para touros. Então, no lusco-fusco do final da tarde, um espanhol meio borracho fotografou a gente indo para a praia admirar as centenas de gatos com olhos de raio laser. Pois não é que, finalmente, alguém viu as duas juntas, uma ao lado da outra, uma branca, outra vermelha, uma anja, outra demônia?! E ainda tem gente que acha a gente é uma só. Mas a gente jura jura jura que é duas. Ou bipolar. Vai saber. 

(Publicado originalmente no site
Saturnália Astrologia & Cidade, http://saturnalia.com.br/)

sábado, julho 14, 2012

As Catacumbas, a Revolução Francesa e um abraço de Hades


Catacumbas de Paris, 2009

Ela não se lembra se era outono ou inverno quando visitou as Catacumbas de Paris, única cidade do mundo em que 300 km de subterrâneos cobertos de ossos se tornaram museu. Mas voltando ao começo: ela se lembra que chovia forte e tristemente, dando a tudo a sua volta aquele ar cinzento mesmo quando havia cor. Isso não importava, já que a jornada não seria de luz e beleza, mas um vislumbre do reino de Hades.

Nos túneis sombrios das Catacumbas, maior necrópole do mundo, estão os ossos de seis milhões de pessoas. Começaram a ser retirados do antigo cemitério des Saints-Innocents (o único na cidade a receber os despojos humanos no espaço de mais de mil anos), poucos anos antes que fosse deflagrada a Revolução Francesa em 1789 e só encontraram paz quase 100 anos depois, com o final do transporte dos ossos à nova morada.

Ninguém sabe quem foram as pessoas às quais pertenceram os ossos que hoje se empilham em paredes sinistras. Alguns, no entanto, sustentaram os corpos dos rebeldes que lutaram na praça do Hôtel de Ville em 28 e 29 de agosto de 1788 e no Palais des Tuileries em 10 de agosto de 1792. Curiosamente, os ossos de Robespierre, o Incorruptível, um dos principais líderes da Revolução Francesa, e Malesherbes, partidário do Rei, descansam lado a lado em algum ponto das Catacumbas.

A descida até o ossário era difícil. As galerias eram escuras, úmidas e cheiravam a mofo. Ela andava com todo cuidado, já que havia sempre o risco de deslizar no lodo. Não admira que ela e todos que faziam o mesmo trajeto temiam dar de cara com os horrendos ratos de Paris, descritos em obras famosas – como Les Misérables, de Victor Hugo – que enfatizaram a pobreza e a sujeira nas quais vivia a população até bem pouco tempo.

No entanto, ela logo se lembrou que, durante a Segunda Guerra Mundial, judeus e militantes da Resistência Francesa tinham usado intensivamente os subterrâneos de Paris para escapar dos nazistas. Naquela época, os alemães chamavam os judeus de “ratos”. Assim, em total solidariedade aos judeus, este povo admirável, ela decidiu que nenhum rato poderia ser tão mau quanto foram Hitler e seus seguidores, nem mesmo aqueles ratos pavorosos que ameaçavam surgir das trevas das Catacumbas.

Os pensamentos, no entanto, foram se esvaziando enquanto ela caminhava. Logo se deu conta de que havia ali um silêncio que não era rompido pelas vozes humanas. Era um silêncio de coisa eterna. À medida que se adentrava pela galeria, as pilhas de ossos surgiam, algumas simplesmente jogadas de qualquer jeito, outras cuidadosamente construídas como paredes. Nenhuma luz ajudava a visão, mas curiosamente não se sentia medo algum. Aliás, os trens fantasmas de parques de diversões eram muito mais apavorantes. Também não se sentia nenhuma reverência do tipo religioso. Ali, o que se sentia era o Mistério.

O Mistério podia ser percebido de duas maneiras. Era o pequeno mistério primeiro. Aquele que ela sentiu ao se deparar com um crânio com um buraco na fronte. Teria morrido com um tiro no século XIX? Ou seria um revolucionário que morreu quando a Bastilha foi tomada? Era jovem? Era um homem? A quem pertenceu aquele crânio real, verdadeiro? Quem era essa pessoa? Que vida ela viveu? Casou, teve filhos? Não era um crânio de série de crime e suspense, era o crânio de alguém real. Isso fazia toda a diferença.

Naquela hora, o pequeno mistério quase se tornou um grande mistério, uma vez que era óbvio que ela jamais teria uma resposta para essas perguntas. Nem mesmo saberia se, em vida, ele ou ela tinha usufruído da beleza e da luz únicas daquela cidade ou se tinha vivido nos submundos da miséria. E, é claro, ela nunca saberia se Plutão ou Vênus tinha comandado seus atos, nem se o almutem a reger sua carta natal era Saturno. O que significaria poder dizer se teve uma vida de guerra ou de amor, ou se seguiu por um caminho de grandes restrições e esperas.

O Grande Mistério, no entanto, falava a ela por questões universais. Ao ver todos aqueles ossos seis milhões de pessoas mortas ao longo de 10 ou 13 séculos (ninguém sabe direito), ela se perguntava: de onde elas vêm? Para onde elas vão? E depois: de onde nós viemos? Para onde nós vamos? E o que fica de tudo que fizemos? Essas são as questões irrespondíveis. São aquelas que nunca terão respostas.

Então, o silêncio pleno de sons daquelas galerias e de seus crânios despidos de olhos sussurrou em seu ouvido que visitar o reino de Hades é uma maneira de voltar a viver, apreciando o momento, se deixando inebriar pela luz e pela beleza do mundo de Cima, lutando para que o mundo de Cima não se torne como o mundo de Baixo, com suas perguntas eternamente sem respostas.

Finalmente, ela voltou a subir as galerias, se despedindo dos mortos de tantas eras. Sentiu vontade de chorar por ter sido capaz de escutar o que eles tinham a dizer. Por ter sido capaz de ouvir o silêncio de quem não pode mais falar de suas existências e nele encontrar tudo que era preciso para partir com a alma agradecida.

Na saída, ela beijou seu filho, que fizera a jornada com ela, e se dirigiram a estação Denfert-Rochereau do metrô. Antes de mergulhar no subterrâneo trivial da estação, ela olhou para fora. Ainda chovia e a praça era um festival de guarda-chuvas colorindo o mundo cinza.


***


Alguns anos depois, ela foi convidada a escrever para o Saturnália, estreando justamente em 14 de julho, data que marca o início da Revolução Francesa. No dia anterior, Urano – o planeta do despertar, das mudanças súbitas, das revoltas e do inesperado – retrogradou à espera de Plutão (ou Hades, o senhor dos reinos subterrâneos), planeta do inconsciente, da morte, da metamorfose e do poder.

Urano – que em grego significa “céu” – foi descoberto por Sir William Herschel em 13 de março de 1781, apenas oito anos da queda da Bastilha. E a Revolução Francesa, com todos as suas fases e governos, se deu inteira durante o ciclo de Plutão em Aquário (signo que, na astrologia moderna, é regido por Urano), entre 1778 e 1798. No ano seguinte, 1799, a monarquia foi reinstalada por Napoleão Bonaparte. Portanto, os princípios universais que a Revolução Francesa buscava – Liberdade, Fraternidade, Igualdade – continuaram (e ainda continuam) tão longe como o Céu para os que vivem na Terra. 

Ainda assim, ela se pergunta mais uma pergunta sem resposta: o que será que estes dois planetas trarão em breve para a humanidade? Ela se recorda das Catacumbas, que foram criadas às vésperas da Revolução Francesa para abrigar os guerreiros mortos de tantas épocas. Ali, Urano e Plutão já estão juntos há muito tempo.

  (texto publicado originalmente no site
 Saturnália - Astrologia & Cidade, http://saturnalia.com.br/) 

terça-feira, fevereiro 14, 2012

metamorfose





e se eu dissesse
que tudo que havia nas minhas mãos
eram destroços.
e então veio você e me virou
e revirou pelo avesso
fez do meu corpo arena de desejos loucos
dos meus cabelos fontes, dos meus olhos noites
dos meus seios frutos, do meu ventre lago
das minhas coxas abertas pontes,
do meu sexo exposto templo.
e na manhã última dos tempos,
me cobriu de folhas mortas
para que eu fecundasse a terra
e renascesse sem dor e sem nome,
como deusa nova, para o teu deleite.

terça-feira, janeiro 31, 2012

liberdade


Boris Vian



Sobre o umbral da tua morada
Sobre o assoalho reluzente
Sobre a caixa do piano
Escrevo teu nome

Sobre o primeiro degrau
Sobre o segundo e os outros
Sobre a porta do teu lar
Escrevo teu nome

Sobre as paredes do quarto
Sobre o papel viperino
Sobre a lareira de cinzas
Escrevo teu nome

Sobre a almofada os lençóis
Sobre esse colchão de lã
Sobre o travesseiro gasto
Escrevo teu nome

Sobre o rosto concentrado
Sobre as narinas abertas
Sobre os dois seios agudos
Escrevo teu nome

Sobre teu ventre de escudo
Sobre tuas coxas abertas
Teu mistério corrediço
Escrevo teu nome

Eu vim no meio da noite
Vim rabiscar tudo isso
Vim em busca de teu nome
Escrevê-lo
Com esperma.

Boris Vian, Escritos Pornográficos,
tradução de Heloísa Jahn