sábado, julho 14, 2012

As Catacumbas, a Revolução Francesa e um abraço de Hades


Catacumbas de Paris, 2009

Ela não se lembra se era outono ou inverno quando visitou as Catacumbas de Paris, única cidade do mundo em que 300 km de subterrâneos cobertos de ossos se tornaram museu. Mas voltando ao começo: ela se lembra que chovia forte e tristemente, dando a tudo a sua volta aquele ar cinzento mesmo quando havia cor. Isso não importava, já que a jornada não seria de luz e beleza, mas um vislumbre do reino de Hades.

Nos túneis sombrios das Catacumbas, maior necrópole do mundo, estão os ossos de seis milhões de pessoas. Começaram a ser retirados do antigo cemitério des Saints-Innocents (o único na cidade a receber os despojos humanos no espaço de mais de mil anos), poucos anos antes que fosse deflagrada a Revolução Francesa em 1789 e só encontraram paz quase 100 anos depois, com o final do transporte dos ossos à nova morada.

Ninguém sabe quem foram as pessoas às quais pertenceram os ossos que hoje se empilham em paredes sinistras. Alguns, no entanto, sustentaram os corpos dos rebeldes que lutaram na praça do Hôtel de Ville em 28 e 29 de agosto de 1788 e no Palais des Tuileries em 10 de agosto de 1792. Curiosamente, os ossos de Robespierre, o Incorruptível, um dos principais líderes da Revolução Francesa, e Malesherbes, partidário do Rei, descansam lado a lado em algum ponto das Catacumbas.

A descida até o ossário era difícil. As galerias eram escuras, úmidas e cheiravam a mofo. Ela andava com todo cuidado, já que havia sempre o risco de deslizar no lodo. Não admira que ela e todos que faziam o mesmo trajeto temiam dar de cara com os horrendos ratos de Paris, descritos em obras famosas – como Les Misérables, de Victor Hugo – que enfatizaram a pobreza e a sujeira nas quais vivia a população até bem pouco tempo.

No entanto, ela logo se lembrou que, durante a Segunda Guerra Mundial, judeus e militantes da Resistência Francesa tinham usado intensivamente os subterrâneos de Paris para escapar dos nazistas. Naquela época, os alemães chamavam os judeus de “ratos”. Assim, em total solidariedade aos judeus, este povo admirável, ela decidiu que nenhum rato poderia ser tão mau quanto foram Hitler e seus seguidores, nem mesmo aqueles ratos pavorosos que ameaçavam surgir das trevas das Catacumbas.

Os pensamentos, no entanto, foram se esvaziando enquanto ela caminhava. Logo se deu conta de que havia ali um silêncio que não era rompido pelas vozes humanas. Era um silêncio de coisa eterna. À medida que se adentrava pela galeria, as pilhas de ossos surgiam, algumas simplesmente jogadas de qualquer jeito, outras cuidadosamente construídas como paredes. Nenhuma luz ajudava a visão, mas curiosamente não se sentia medo algum. Aliás, os trens fantasmas de parques de diversões eram muito mais apavorantes. Também não se sentia nenhuma reverência do tipo religioso. Ali, o que se sentia era o Mistério.

O Mistério podia ser percebido de duas maneiras. Era o pequeno mistério primeiro. Aquele que ela sentiu ao se deparar com um crânio com um buraco na fronte. Teria morrido com um tiro no século XIX? Ou seria um revolucionário que morreu quando a Bastilha foi tomada? Era jovem? Era um homem? A quem pertenceu aquele crânio real, verdadeiro? Quem era essa pessoa? Que vida ela viveu? Casou, teve filhos? Não era um crânio de série de crime e suspense, era o crânio de alguém real. Isso fazia toda a diferença.

Naquela hora, o pequeno mistério quase se tornou um grande mistério, uma vez que era óbvio que ela jamais teria uma resposta para essas perguntas. Nem mesmo saberia se, em vida, ele ou ela tinha usufruído da beleza e da luz únicas daquela cidade ou se tinha vivido nos submundos da miséria. E, é claro, ela nunca saberia se Plutão ou Vênus tinha comandado seus atos, nem se o almutem a reger sua carta natal era Saturno. O que significaria poder dizer se teve uma vida de guerra ou de amor, ou se seguiu por um caminho de grandes restrições e esperas.

O Grande Mistério, no entanto, falava a ela por questões universais. Ao ver todos aqueles ossos seis milhões de pessoas mortas ao longo de 10 ou 13 séculos (ninguém sabe direito), ela se perguntava: de onde elas vêm? Para onde elas vão? E depois: de onde nós viemos? Para onde nós vamos? E o que fica de tudo que fizemos? Essas são as questões irrespondíveis. São aquelas que nunca terão respostas.

Então, o silêncio pleno de sons daquelas galerias e de seus crânios despidos de olhos sussurrou em seu ouvido que visitar o reino de Hades é uma maneira de voltar a viver, apreciando o momento, se deixando inebriar pela luz e pela beleza do mundo de Cima, lutando para que o mundo de Cima não se torne como o mundo de Baixo, com suas perguntas eternamente sem respostas.

Finalmente, ela voltou a subir as galerias, se despedindo dos mortos de tantas eras. Sentiu vontade de chorar por ter sido capaz de escutar o que eles tinham a dizer. Por ter sido capaz de ouvir o silêncio de quem não pode mais falar de suas existências e nele encontrar tudo que era preciso para partir com a alma agradecida.

Na saída, ela beijou seu filho, que fizera a jornada com ela, e se dirigiram a estação Denfert-Rochereau do metrô. Antes de mergulhar no subterrâneo trivial da estação, ela olhou para fora. Ainda chovia e a praça era um festival de guarda-chuvas colorindo o mundo cinza.


***


Alguns anos depois, ela foi convidada a escrever para o Saturnália, estreando justamente em 14 de julho, data que marca o início da Revolução Francesa. No dia anterior, Urano – o planeta do despertar, das mudanças súbitas, das revoltas e do inesperado – retrogradou à espera de Plutão (ou Hades, o senhor dos reinos subterrâneos), planeta do inconsciente, da morte, da metamorfose e do poder.

Urano – que em grego significa “céu” – foi descoberto por Sir William Herschel em 13 de março de 1781, apenas oito anos da queda da Bastilha. E a Revolução Francesa, com todos as suas fases e governos, se deu inteira durante o ciclo de Plutão em Aquário (signo que, na astrologia moderna, é regido por Urano), entre 1778 e 1798. No ano seguinte, 1799, a monarquia foi reinstalada por Napoleão Bonaparte. Portanto, os princípios universais que a Revolução Francesa buscava – Liberdade, Fraternidade, Igualdade – continuaram (e ainda continuam) tão longe como o Céu para os que vivem na Terra. 

Ainda assim, ela se pergunta mais uma pergunta sem resposta: o que será que estes dois planetas trarão em breve para a humanidade? Ela se recorda das Catacumbas, que foram criadas às vésperas da Revolução Francesa para abrigar os guerreiros mortos de tantas épocas. Ali, Urano e Plutão já estão juntos há muito tempo.

  (texto publicado originalmente no site
 Saturnália - Astrologia & Cidade, http://saturnalia.com.br/) 

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