terça-feira, julho 17, 2012

o infindável labirinto da memória


Sadness (Ellen Terry), por Julia Margareth Cameron, 1863
Para minha mãe
Desde menina, ela tinha essa obsessão: guardar a história da sua vida e das de todos que dela fizessem parte. Ela guardava tudo: boletins e livros da infância, diários da adolescência, discos que embalaram seus primeiros romances, caixinhas vazias de bombons, cartas e cartões postais de familiares e amigos, fitas de caixas de presente, bilhetes de namorados, sabonetes de motel, rolhas de vinhos tomados em noites de amor, roupinhas de quando o filho era bebê, entre tantas outras coisas. Mas o que mais a encantava eram as fotografias.
Tudo começou aos nove anos, com a caixa de papelão que tinha encontrado nas coisas da mãe. Ao abri-la, sem querer derrubou todo seu conteúdo no chão e o que viu foi um mar de carinhas em preto e branco, nas mais diversas atividades e situações. Aquele mundo de tantas épocas a fascinou. Continuou revisitando a caixa ano após ano. Havia fotografias de muitos anos antes do seu nascimento, expondo rostos que ela não conhecia. Rostos que sorriam em casamentos, que ficavam solenes em batizados, que pareciam tristes sem saber que estavam sendo observados.
Meninos que brincavam em ruas de terra, outros que deslizavam em tobogãs muitos anos mais tarde. A mãe menina, ainda loira, com as sobrancelhas franzidas. E bem depois, nos anos 60, muito bela num vestido curto. O pai jovem, a avó sem cabelos brancos, os irmãos encapetados numa brincadeira, a irmã de vestidinho e sorriso tímido, ela mesma de tranças e com um par de tênis Bamba coberto de piche.
Era um grande mistério esse da fotografia. Lá estava ela adolescente com as amigas e, mais adiante, sua mãe no baile de formatura aos 17 anos. As duas juntas lado a lado, quase com a mesma idade. A mágica da fotografia embaralhava os tempos e as épocas, tornando contemporâneas – pelo menos ali no chão da sala – a filha, a mãe, a avó. Elas dialogavam na sua alegria, na sua tristeza, no seu abandono, na sua ausência. Porque as três estavam irremediavelmente ausentes daquelas fotos. Afinal, nenhuma das três continuava sendo quem foi.
Mas não importava. Era parte do fascínio. Como os pequenos monóculos com slides dentro, que eram tirados na praia e que hoje não existem mais. Dinossauros minúsculos de outra época não tão distante assim. Enfim. O fascínio pela fotografia – ou melhor, pela capacidade que a fotografia tem de resgatar instantaneamente a memória de um tempo, de uma época, de um momento, trazendo num simples olhar toda a emoção vivida – se tornou uma obsessão realmente estranha para ela.
Estranha porque, não mais contente com os seus álbuns de família, ela se tornou uma caçadora de álbuns de família alheios. Colocou um anúncio numa revista pedindo àqueles que não quisessem mais suas fotografias de família que as enviassem para ela. A fim de disfarçar o inusitado do pedido, dizia que pretendia fazer uma pesquisa antropológica sobre o assunto, embora tivesse apenas 17 anos e não estivesse ainda na universidade.
O anúncio resultou em um único envio da parte de um senhor de mais de 80 anos sem descendentes, que numerou e esclareceu detalhadamente quem eram os fotografados e o que eles faziam. Tanta organização se explicava pela formação militar da família de origem portuguesa. Entre as mais de 80 fotografias, havia muitas do final do século XIX e início do XX, retratando parentes portugueses, alguns às vésperas de partir para a guerra.
Aquilo a comoveu profundamente. Tanto o gesto do homem que não a conhecia, quanto as próprias fotografias, que se tornaram parte do acervo da sua própria família. Até hoje, 30 anos depois, ela as guarda exatamente da mesma maneira que ele as enviou. De vez em quando, ela as tira da caixa e as observa – e, desse modo, acredita estar honrando a confiança do velho militar e mantendo viva a lembrança dele e de sua família. Afinal, enquanto alguém olhar para as velhas fotografias, aquelas pessoas ainda estarão presentes neste mundo.
Mas não parou aí a obsessão dela. Poucos anos mais tarde, ela se casou com o filho de uma espanhola. Esta, por sua vez, era filha de um militante da Resistência Espanhola à ditadura franquista, o qual esteve preso durante 10 anos em um campo de concentração no norte da África. A sogra, nascida durante o bombardeio de Valência em1937, tinha enorme orgulho da história familiar. E, como era de se esperar, ela tinha centenas de fotografias de família.
Um belo dia, a sogra colocou uma caixa enorme sobre a mesa, dizendo que se livraria de uma parte das fotografias. Imediatamente, a nora se eriçou e se postou diante da caixa. Nas horas seguintes saíram dali dezenas de fotos de familiares catalães que remontavam ao início do século XX, antigos postais escritos com caneta nanquim, convites de casamento e aniversário dos anos 50 e 60, imagens de militantes na clandestinidade, outras de pessoas explorando cavernas com cordas e tudo, bebês rechonchudos e uma infinidade de fotografias de todas as décadas do século passado.
Enquanto a sogra fazia uma pilha das fotos rejeitadas, a nora ia separando para si todas aquelas que ela não permitiria que virassem cinzas ou lixo. Ao final da faxina, tinha um novo álbum de família com mais de 50 fotografias, sem falar os cartões postais europeus de antes da Primeira Guerra Mundial, os convites de casamento, as lembrancinhas de bebê, os documentos de identidade da primeira metade do século. A sogra estranhou o interesse da nora, mas também ficou envaidecida com isso. Assim, o novo álbum foi se juntar aos dois primeiros.
Para ela, era quase uma missão: reunir a memória do mundo para que ela não se perdesse. No entanto, nunca mais conseguiu obter novos álbuns de família. A fotografia digital chegou e acabou com a graça e o encanto das caixas cheias de fotografias em preto e branco, dos álbuns de folhas grossas e com molduras, dos porta-retratos na mesinha de canto e das caçadas por baús esquecidos em sótãos, porões, garagens e depósitos. Hoje ela caça suas imagens dos diversos tempos e épocas nos arquivos da internet.
Ao longo dos anos, ela tinha estudado e praticado fotografia. Conhecia muito bem os grandes nomes desta arte, mas havia um nome que sempre a fascinara pela capacidade de captar a vida pulsante em seus modelos de tal modo que, mesmo muitos anos depois de tirada a fotografia, é possível ser completamente envolvido por essa sensação. Trata-se de Julia Margareth Cameron, a primeira fotógrafa britânica, que começou a fotografar somente aos 48 anos e morreu em 1879.
Um dia, vasculhando os álbuns fotográficos eletrônicos, ela encontrou uma imagem de Cameron, tirada 101 anos antes do seu nascimento, que a comoveu tanto quanto os seus álbuns de família: o retrato de uma linda moça de 16 anos com ar triste que parece ainda tão viva que até dói. A moça era Ellen Terry, que se tornaria uma grande dama do teatro. Diante do emocionante impacto dessa presença quase física, quase palpável, mesmo passados 150 anos, ela se perguntou como será o futuro das nossas lembranças na era da imagem em movimento. Que coisa estranha será ver, daqui a 200 anos, as pessoas de hoje vivas e em ação nos filmes de família. Foi então que percebeu que os mortos estarão totalmente despertos no infindável labirinto da memória. Mais despertos do que jamais puderam estar.


(Publicado originalmente no site
Saturnália Astrologia & Cidade, http://saturnalia.com.br/)

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