sábado, novembro 26, 2011

escuta clandestina



Tenho algo pra te contar, uma coisa inusitada que  aconteceu comigo hoje, agorinha mesmo.

Estava trabalhando na tradução que tenho que enviar para a França nesta madrugada. No quarto, o celular tocou, berrando desesperadamente. Era um amigo meu, cuja lembrança me acompanhou o dia inteiro insidiosamente, invadindo meus pensamentos sem ser chamado, feito formiguinhas visitadeiras.

Quando vi o nome no visor do celular, sorri aquele sorriso de segredo e de magia que nasce quando percebemos que o Universo parece estar conspirando a favor de algo que nem sabemos o que é ainda. Enfim, para resumir, o telefonema desse amigo parecia um caso de telepatia explícita.

Atendo e digo alô. Para meu espanto, ele não responde. Tento de novo, mas ele não fala comigo, fala com outra pessoa (na rua?). Espero, talvez ele esteja pegando o troco de alguma coisa e já vai falar comigo.

Mas não: percebo que ele não sabe que me ligou literalmente sem querer. Não resisto a ser écouteuse de sua trajetória pela rua: é como se eu estivesse no bolso de Leopold Bloom na velha Dublin.

Meu coração bate forte no peito ao pensar que ele vai flagrar a minha indiscrição a qualquer momento. Mas ainda assim não resisto: acompanho seus passos na rua, ouço quando alguém pergunta sobre um hotel (será ele quem o procura?), depois escuto sua voz dizendo, daquele jeito lindo e apaixonado dele, que "só há inverno e verão; estamos no quinto mês do inverno". Um outro homem, com sotaque nordestino, retruca: "fazia 36 graus quando eu saí de lá".

Ele volta a caminhar. Depois parece abrir uma porta e, então, escuto barulho de água: louça sendo lavada? Ele resmunga alguma coisa para si mesmo e eu aqui na minha casa sorrio um sorriso de Monalisa, deliciada por estar com ele sem que ele o pressinta.

Mas, de repente, me dou conta que em algum momento ele vai perceber. Vai tirar o celular do bolso e ver que me chamou sem saber - e que eu fiquei à escuta dos seus movimentos. Fico apavorada, não quero ser surpreendida, mas ainda resisto a desligar.

Então, meu filho aparece e quer saber por que estou com este sorriso bobo na cara. Largo o celular aberto na cama e saio do quarto dizendo que não é nada. Volto quando me dou conta de que ele vai pegar o celular. Dito e feito: "quem é esse cara?" Arranco o celular das mãos dele e me escondo no escritório.

Ouço com a respiração suspensa, para saber se o meu amigo se deu conta da minha escuta clandestina. Não, ainda não. Então, me sinto desconfortável e faço o gesto final, encerrando o passeio que fizemos juntos sem que ele soubesse. Olho o visor: durou 18 minutos o nosso passeio, eu no bolso dele. 18 como o dia do seu aniversário.
 
(03/10/2011)

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