Os sonhos chegaram. Ainda estrangeiros. Eu levei um tempo para acolhê-los. No começo eu os expulsava. No entanto são trabalhadores altamente qualificados. Mas eu temia fazer trabalhar os intrusos no escuro. É fácil demais. A gente dorme, a gente é salva, durante este tempo os anões mágicos contam as mil e uma noites. Quando eu comecei a cuidar deles tinha consciência de uma fraude enorme. Não sei em que momento me parecia roubar os tesouros. Eu era proprietária de uma mina, mas o que é que isso quer dizer proprietária quando se usufrui de um bem nem adquirido nem herdado? Eu sou proprietária de potências-outras que eu não controlo, que não me obedecem, eu tenho um exército de cavalos selvagens. Eu partilho com eles a fantasia dos direitos autorais. A bem dizer, eu os nutro. Minhas paixões, minhas tempestades minhas crises de cólera ou de desespero eis suas fontes e seus alimentos. Com frequência eles me dão uma mão quando escrevo. Às vezes um pontapé. Se estou cansada, monto num sonho, o primeiro que passa. Todas as construções, cenários fabulosos mobiliários e imobiliários, são eles. Eles têm toda a força e o humor que eu não tenho. Será que usei neste texto os serviços de um sonho? Eu podia mentir para vocês.
Entre os sonhos e eu acontece assim: eu os "escrevo" ou melhor anoto tão precisamente quanto for possível suas minuciosas aventuras. É uma arte e uma disciplina. Eu falarei disso uma outra vez. Do lado deles eles me escrevem. E eles me escrevem. Eles me escrevem cartas do meu estrangeiro. Eles me dão notícias de mim. Estas notícias trazem todas as datas da minha história. Assim fico sabendo por eles como os acontecimentos antigos e totalmente esquecidos estão em plena atividade nos meus bastidores. E eles providenciam entre eu e aqueles dos meus que passaram para o lado dos mortos até mesmo entrevistas nunca muito longas mas suficientemente potentes e extáticas para deslocar as muralhas das separações. Fazendo isso tudo e muitas outras operações miraculosas, posso dizer que eles me escrevem também. Eu sou o livro no qual eles guardam papeizinhos.
Texto de Hélène Cixous
Tradução de Patricia Smaniotto
CIXOUS, Hélène. "Le livre que je n'écris pas".
In CALLE-GRUBER, Mireille; GERMAIN, Marie Odile (dir.),
Genèses Généalogies Genres:
Autour de l’oeuvre d’Hélène Cixous.
Paris: Galilée/Bibliothèque Nationale de France, 2006.
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