Stop the violence, François Robert, 2009
23 de fevereiro de 2012, Homs, Síria.
A última notícia do dia em La Chamelle era:
Eles jamais se casariam.
***
Tudo sempre se repete. Ciclos dentro de ciclos dentro de ciclos. Ciclos maiores para a humanidade. Ciclos menores para os indivíduos. E, quando menos se espera, você é alcançado pelos cães dos Infernos. Meu pai – um pied-noir, como eram chamados os colonos franceses – os tinha encontrado durante a Guerra da Argélia. Ele se juntara aos argelinos árabes, kabyles e berberes na luta contra a ocupação francesa e pela independência do país onde nasci. Ou seja, tinha virado as costas à França para que eu e muitos outros pudessem deixar de viver uma vida de segunda classe sob o governo de um país que nos desprezava a ponto de nos tornar apátridas quando os nazistas assim o exigiram. Um país padrasto que o envergonhava. Por isso, ele lutou a “guerra das memórias”. Foi morto com um tiro na testa no Massacre de 17 de outubro de 1961, sem chegar a ver o reconhecimento da independência da Argélia ser anunciado por De Gaulle no verão do ano seguinte. Aqui e agora, diante deste homem que traz os cães consigo, tentando proteger com meu corpo a mulher que amo, na esperança de que a carne se transforme em escudo ou carapaça, percebo que estou prestes a morrer. Terei o mesmo destino trágico ou heroico de meu pai, apesar de ser apenas um homem comum. Um homem que fotografa as dores do mundo. Um homem que ama profundamente uma mulher. Um homem que acredita em liberdade. Por ela morreu meu pai, por ela morrerei eu e por ela foi assassinado o maior poeta argelino, Jean Sénac, na capital de meu país, Argel, em 30 de agosto de 1973. Um de seus poemas – que, segundo minha mãe, meu pai recitava apaixonadamente quando eu estava no útero dela – será a última coisa que ressoará nos meus ouvidos:
Este homem trazia sua infância
no rosto como um bestiário
ele amava seus amigos
a urtiga e a hera o amavam
Este homem tinha a verdade
enfiada nas suas mãos unidas
e sangrava
À mãe que queria tirar sua faca
à filha que queria lavar sua ferida
ele diz “não impeça meu sol de girar”
Este homem era justo como uma mão aberta
precipitaram-se sobre ele
para curá-lo para fechá-lo
então ele se abriu ainda mais
e fez entrar a terra nele
Como o impediam de viver
ele se fez poema e se calou
Como queriam traçá-lo
ele se fez árvore e se calou
Como arrancavam seus galhos
ele se fez carvão e se calou
Como escavavam suas veias
ele se fez chama e se calou
Assim suas cinzas na cidade
levarão seu desafio
Este homem era grande como uma mão aberta*.
***
Ele engatilhou o cão da arma e o tiro ecoou por toda parte. A bala incrivelmente veloz se alojou na testa daquele que teria sido meu marido dentro de poucos dias. Ele tinha segurado minha mão no último instante e, na tentativa de me proteger, me ofereceu em sacrifício sua própria vida. Na minha histeria diante de todo aquele sangue, eu pensava sem parar nos presentes que seriam devolvidos, no bolo não partido que seria dado às crianças. Então me dei conta de que um funeral ocuparia o salão do meu casamento. Mas meu amor jamais levaria o talit para o túmulo, nem ouviria a prece do kaddish. A chuva começava a cair lá fora. Lágrimas frias enviadas pelos céus, chorando minha perda. E, junto com os raios e trovões, toda a minha dor se transformava em farpas que me deixavam em carne viva. Teria sido assim, tão terrivelmente doloroso, tão incomensuravelmente aterrador, quando minha avó soube da morte do meu avó em Sobibor, durante a revolta e fuga de prisioneiros de Lager I em 14 de outubro de 1943? Talvez ela nunca tenha sabido. Talvez tenha ido para a câmara de gás muito antes que ele morresse fuzilado nas cercas de arame farpado, com os cães latindo para os seus ossos. Teria ele falado com os cães antes de morrer? Teria ele pedido aos cães para que não o trucidassem, que não lhe devorassem as entranhas, que não tornassem ainda mais completa, indigna e humilhante a aniquilação da sua identidade e da sua existência? Esses pensamentos fora de hora corriam desabaladamente pela minha mente, enquanto a minha própria morte estava sendo preparada. Os trovões que eu ouvira antes eram, na verdade, bombas sendo lançadas por toda a cidade de Homs. O mundo à minha volta estava sendo bombardeado e eu estava aqui, nesta sala no quarto andar de um edifício, entre o corpo morto do meu amado e o olhar feroz de meu inimigo. Rolos de fumaça negra surgiam por todo lado e, nesse momento, eu me ajoelhei, me abracei e recitei um poema de morte para mim mesma. Um poema de Paul Celan, considerado o maior poeta do século XX. Um poeta judeu destroçado pela barbárie nazista a ponto de se suicidar nas águas do rio Sena, em Paris, em 20 de abril de 1970. A ironia: mesmos dia e mês em que nasceu Hitler. Hitler não está mais aqui mas, ainda assim, eu estou diante da morte. E ela me levará aos céus. Literalmente.
Leite negro da madrugada nós o bebemos de noite
nós o bebemos ao meio-dia e de manhã nós o bebemos de noite nós o bebemos bebemos
cavamos um túmulo nos ares lá não se jaz apertado
Um homem mora na casa bole com cobras escreve
escreve para a Alemanha quando escurece teu cabelo de ouro Margarete
escreve e se planta diante da casa e as estrelas faíscam ele assobia para os seus Mastins
assobia para os seus judeus manda cavar um túmulo na terra
ordena-nos agora toquem para dançar
Leite negro da madrugada nós te bebemos de noite
nós te bebemos de manhã e ao meio-dia nós te bebemos de noite nós bebemos bebemos
Um homem mora na casa e bole com cobras escreve
escreve para a Alemanha quando escurece teu cabelo de ouro Margarete
Teu cabelo de cinzas Sulamita cavamos um túmulo nos ares lá não se jaz apertado
Ele brada cravem mais fundo na terra vocês aí cantem e toquem
agarra a arma na cinta brande-a seus olhos são azuis
cravem mais fundo as pás vocês aí continuem tocando para dançar
Leite negro da madrugada nós te bebemos de noite
nós te bebemos ao meio-dia e de manhã nós te bebemos de noite nós bebemos bebemos
um homem mora na casa teu cabelo de ouro Margarete
teu cabelo de cinzas Sulamita ele bole com cobras
Ele brada toquem a morte mais doce a morte é um dos mestres da Alemanha
ele brada toquem mais fundo os violinos vocês aí sobem como fumaça no ar
aí vocês têm um túmulo nas nuvens lá não se jaz apertado
Leite negro da madrugada nós te bebemos de noite
nós te bebemos ao meio-dia a morte é um dos mestres da Alemanha
nós te bebemos de noite e de manhã nós bebemos bebemos
a morte é um dos mestres da Alemanha seu olho é azul
acerta-te com uma bala de chumbo acerta-te em cheio
um homem mora na casa teu cabelo de ouro Margarete
ele atiça seus mastins sobre nós e sonha a morte é um dos mestres da Alemanha
teu cabelo de ouro Margarete
teu cabelo de cinzas Sulamita**
***
quando eu era criança gostava de facas de abrir os bichos junto com meu pai no campo mas quando eu cresci troquei aquelas facas pela arma velha que achei no meio dos destroços da última guerra aquela guerra mais antiga de quando eu era menino porque a arma era mais rápida eu podia mirar a pessoa de longe mirar entre os olhos brincar de alvo com ela e finalmente atirar e ver a bala saindo rápida e entrando na carne quebrando os ossos como a gente fazia com os animais gostava tanto de atirar e também de usar as facas pra destrinchar a barriga da pessoa então eu resolvi que tinha mesmo que usar esse meu dom a serviço do Islã pra acabar com esses estrangeiros que vêm aqui dizer o que é bom pra nós por que é que você está fazendo isso muçulmano vendido ao ocidente impuro pela cama dessa mulher por que está protegendo a judia suja se entrar na minha frente vai levar um tiro bem no meio dos olhos pois meu dedo está coçando zuuumm páááá eu não disse foi ele quem pediu foi ficar na frente dessa judia suja agora vai ser a vez dela essa jornalista que traz o mal vocês não entendem tudo isso é em nome do Islã meu pai dizia que a gente descende da Fidáiyya a gente do sacrifício estes mesmos que os inimigos chamam de Hashishiyya os assassinos sou assassino pelo Islã pra mim só existe o aqui e o agora é onde espero a vinda do último profeta aquele que revelará a mensagem do Islã para toda a humanidade quando finalmente o mundo será o que deve ser mas não se mexa mulher impura não se mexa vou te dar um tiro no meio da testa mas talvez seja melhor sair daqui estou sentindo o cheiro da fumaça para com isso sua judia suja para de chorar não gosto desses jornalistas que só falam mentiras sobre nós nos jornais deles vou matar todos que eu encontrar pela frente que nem esses dois aqui e depois eu estou seguindo ordens de Marja então não tem problema algum estou purificando o mundo e onde eles estavam quando precisei só querem saber de falar mal mas o mal é essa gente de fora que quer mandar na gente eu já perdi quase toda minha família pai mãe irmãos tios primos até minha mulher e meu filho já morreram assassinados todos muçulmanos xiitas com orgulho então agora tenho que cuidar de mim e do meu povo não adianta implorar ianque mentirosa acho que tem alguma coisa acontecendo lá fora logo eles vão acabar com a gente vão mandar uma bomba em cima deste prédio e buuuuummmmmmm você e eu a gente vai morrer na hora despedaçados pedaço de tripa pra todo lado como dos porcos que eu abria com meu pai por isso pode parar de ficar falando isso aí estou engatilhando a arma estou ouvindo os aviões vou mirar entre os teus olhos a bomba está chegando vai ser sangue e carne pra todo lado e eu não estou nem aí a morte liberta zuuuuuummm pááááááá agora você viu e pra terminar judia suja aqui no meu país não tem tempo pra poesia.
* O homem aberto, Jean Sénac, tradução minha.
** Fuga da Morte, Paul Celan, tradução de Modesto Carone.
(Publicado originalmente no site