domingo, julho 15, 2012

nem anjo, nem demônio


Carnaval em Cádiz, 2010

Havia dias em que ela insistia em ser eu. Não adiantava nada sussurrar o contrário: ela se armava com as roupas que eu gosto, passava o batom que eu tinha comprado em Paris, saía pela rua espalhando dobrões de ouro (os meus, é claro). Não que eu me importe muito. É bom sair desse lugar apertado e quente de vez em quando. Mas às vezes me sinto roubada. Sim, roubada. Ela me rouba a personalidade e todos os seus enfeites e, depois, calmamente toma um suco de maracujá ali na esquina, pouco-se-me-dando se o nome da fruta é, para mim, fruit de la passion, que é mais chique. Ou melhor, chic. Talvez porque ela goste mais de falar espanhol, já que tem enorme pendor para o teatro dramático del Siglo de Oro. Mas eu prefiro mesmo é ver o Jack Sparrow no escurinho.

 De qualquer modo, eu fico ressentida com o roubo: afinal, sou eu quem gosta de vadiagem, lua cheia e caramanchão. Ela, ela mesmo, gosta é de melancolia, velas e caraminholas. Tá, vamos dizer que eu sou a malvada, como a Bette Davis naquele filme. Mas sou malvada com razão, não gosto quando ela fica boazinha demais. Parece um mar de chantilly se esparramando e grudando em todo mundo. E levando na cabeça, o que me deixa ainda mais furiosa. Dolorida por tabela. Mas tudo bem se ela vai dançar de vez em quando, isso eu acho ótimo pro esqueleto, melhor que ficar em casa semana após semana lendo Clarice da forma errada. Se é que tem uma forma certa.

Tem gente que pensa que somos gêmeas. Eu dou risada. Eu sou mais velha que ela – ou mais nova, não lembro mais. Mas gêmeos mesmo, só os seios. E que importa? A verdade é quase nunca nos veem juntas. (Sabe como é, incompatibilidade de gênios.) Isso sim é um acontecimento raro: só uma vez alguém conseguiu nos ver de braço dado. Foi no carnaval de Cádiz. Perfeito, já que eu gosto de carnaval e ela de flamenco. Só não gostei que era de dia e eu sou da noite. Resolvi não esquentar a cabeça nem os cornos. Mas como ninguém “pula carnaval” por lá, resolvemos tomar um porre. Ou melhor, eu tomei o porre (chic) de Tapeña Garnacha 2009 – já ela ficou só nas tapas de jamon y chorizo. Ou seja, uma pobreza. (Odeio quem conta trocado. Em euro, ainda por cima!)

Tomado o porre e devorada as tapas, era hora de fazer tudo de novo. Porre, tapas, porre, tapas, porre, tapas. E assim se dava a volta por toda a cidade, “pulando” o carnaval de Cádiz. Não me entenda mal, foi muito divertido – e, quanto a isso, nós duas concordamos. Mas voltando ao acontecimento raro que lá se deu. Éramos um bando de amigos rodando pelas ruazinhas antigas em busca de música. O tempo foi passando, a manhã foi passando, a tarde foi passando, e nada de música que não fosse para touros. Então, no lusco-fusco do final da tarde, um espanhol meio borracho fotografou a gente indo para a praia admirar as centenas de gatos com olhos de raio laser. Pois não é que, finalmente, alguém viu as duas juntas, uma ao lado da outra, uma branca, outra vermelha, uma anja, outra demônia?! E ainda tem gente que acha a gente é uma só. Mas a gente jura jura jura que é duas. Ou bipolar. Vai saber. 

(Publicado originalmente no site
Saturnália Astrologia & Cidade, http://saturnalia.com.br/)

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