Carnaval em Cádiz, 2010
Havia dias em que ela insistia em
ser eu. Não adiantava nada sussurrar o contrário: ela se armava com as roupas
que eu gosto, passava o batom que eu tinha comprado em Paris, saía pela rua
espalhando dobrões de ouro (os meus, é claro). Não que eu me importe muito. É
bom sair desse lugar apertado e quente de vez em quando. Mas às vezes
me sinto roubada. Sim, roubada. Ela me rouba a personalidade e todos os seus
enfeites e, depois, calmamente toma um suco de maracujá ali na esquina, pouco-se-me-dando
se o nome da fruta é, para mim, fruit de
la passion, que é mais chique. Ou melhor, chic. Talvez porque ela goste mais de falar espanhol, já que tem
enorme pendor para o teatro dramático del Siglo de Oro. Mas eu prefiro mesmo é ver
o Jack Sparrow no escurinho.
De qualquer modo, eu fico ressentida com o
roubo: afinal, sou eu quem gosta de vadiagem, lua cheia e caramanchão. Ela, ela
mesmo, gosta é de melancolia, velas e caraminholas. Tá, vamos dizer que eu sou
a malvada, como a Bette Davis naquele filme. Mas sou malvada com razão, não
gosto quando ela fica boazinha demais. Parece um mar de chantilly se
esparramando e grudando em todo mundo. E levando na cabeça, o que me deixa
ainda mais furiosa. Dolorida por tabela. Mas tudo bem se ela vai dançar de vez
em quando, isso eu acho ótimo pro esqueleto, melhor que ficar em casa semana
após semana lendo Clarice da forma errada. Se é que tem uma forma certa.
Tem gente que pensa que somos
gêmeas. Eu dou risada. Eu sou mais velha que ela – ou mais nova, não lembro
mais. Mas gêmeos mesmo, só os seios. E que importa? A verdade é quase nunca nos
veem juntas. (Sabe como é, incompatibilidade de gênios.) Isso sim é um
acontecimento raro: só uma vez alguém conseguiu nos ver de braço dado. Foi no
carnaval de Cádiz. Perfeito, já que eu gosto de carnaval e ela de flamenco. Só
não gostei que era de dia e eu sou da noite. Resolvi não esquentar a cabeça nem
os cornos. Mas como ninguém “pula carnaval” por lá, resolvemos tomar um porre.
Ou melhor, eu tomei o porre (chic) de Tapeña Garnacha 2009 – já ela ficou só nas tapas de jamon y chorizo. Ou seja, uma pobreza.
(Odeio quem conta trocado. Em euro, ainda por cima!)
Tomado o porre e devorada as
tapas, era hora de fazer tudo de novo. Porre, tapas, porre, tapas, porre, tapas.
E assim se dava a volta por toda a cidade, “pulando” o carnaval de Cádiz. Não
me entenda mal, foi muito divertido – e, quanto a isso, nós duas concordamos. Mas
voltando ao acontecimento raro que lá se deu. Éramos um bando de amigos rodando
pelas ruazinhas antigas em busca de música. O tempo foi passando, a manhã foi
passando, a tarde foi passando, e nada de música que não fosse para touros. Então,
no lusco-fusco do final da tarde, um espanhol meio borracho fotografou a gente
indo para a praia admirar as centenas de gatos com olhos de raio laser. Pois
não é que, finalmente, alguém viu as duas juntas, uma ao lado da outra, uma
branca, outra vermelha, uma anja, outra demônia?! E ainda tem gente que acha a
gente é uma só. Mas a gente jura jura jura que é duas. Ou bipolar. Vai saber.
(Publicado originalmente no site
Saturnália Astrologia & Cidade, http://saturnalia.com.br/)
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