Catacumbas de Paris, 2009
Ela não se lembra se era outono
ou inverno quando visitou as Catacumbas de Paris, única cidade do mundo em que 300 km de subterrâneos
cobertos de ossos se tornaram museu. Mas voltando ao começo: ela se lembra que
chovia forte e tristemente, dando a tudo a sua volta aquele ar cinzento mesmo
quando havia cor. Isso não importava, já que a jornada não seria de luz e
beleza, mas um vislumbre do reino de Hades.
Nos túneis sombrios das
Catacumbas, maior necrópole do mundo, estão os ossos de seis milhões de pessoas.
Começaram a ser retirados do antigo cemitério des Saints-Innocents (o único na
cidade a receber os despojos humanos no espaço de mais de mil anos), poucos
anos antes que fosse deflagrada a Revolução Francesa em 1789 e só encontraram
paz quase 100 anos depois, com o final do transporte dos ossos à nova morada.
Ninguém sabe quem foram as
pessoas às quais pertenceram os ossos que hoje se empilham em paredes
sinistras. Alguns, no entanto, sustentaram os corpos dos rebeldes que lutaram
na praça do Hôtel de Ville em 28 e 29 de agosto de 1788 e no Palais des
Tuileries em 10 de agosto de 1792. Curiosamente, os ossos de Robespierre, o
Incorruptível, um dos principais líderes da Revolução Francesa, e Malesherbes,
partidário do Rei, descansam lado a lado em algum ponto das Catacumbas.
A descida até o ossário era
difícil. As galerias eram escuras, úmidas e cheiravam a mofo. Ela andava com
todo cuidado, já que havia sempre o risco de deslizar no lodo. Não admira que
ela e todos que faziam o mesmo trajeto temiam dar de cara com os horrendos
ratos de Paris, descritos em obras famosas – como Les Misérables, de Victor
Hugo – que enfatizaram a pobreza e a sujeira nas quais vivia a população até
bem pouco tempo.
No entanto, ela logo se lembrou
que, durante a Segunda Guerra Mundial, judeus e militantes da Resistência
Francesa tinham usado intensivamente os subterrâneos de Paris para escapar dos
nazistas. Naquela época, os alemães chamavam os judeus de “ratos”. Assim, em
total solidariedade aos judeus, este povo admirável, ela decidiu que nenhum
rato poderia ser tão mau quanto foram Hitler e seus seguidores, nem mesmo
aqueles ratos pavorosos que ameaçavam surgir das trevas das Catacumbas.
Os pensamentos, no entanto, foram
se esvaziando enquanto ela caminhava. Logo se deu conta de que havia ali um
silêncio que não era rompido pelas vozes humanas. Era um silêncio de coisa
eterna. À medida que se adentrava pela galeria, as pilhas de ossos surgiam,
algumas simplesmente jogadas de qualquer jeito, outras cuidadosamente
construídas como paredes. Nenhuma luz ajudava a visão, mas curiosamente não se
sentia medo algum. Aliás, os trens fantasmas de parques de diversões eram muito
mais apavorantes. Também não se sentia nenhuma reverência do tipo religioso.
Ali, o que se sentia era o Mistério.
O Mistério podia ser percebido de
duas maneiras. Era o pequeno mistério primeiro. Aquele que ela sentiu ao se
deparar com um crânio com um buraco na fronte. Teria morrido com um tiro no século
XIX? Ou seria um revolucionário que morreu quando a Bastilha foi tomada? Era
jovem? Era um homem? A quem pertenceu aquele crânio real, verdadeiro? Quem era
essa pessoa? Que vida ela viveu? Casou, teve filhos? Não era um crânio de série
de crime e suspense, era o crânio de alguém real.
Isso fazia toda a diferença.
Naquela hora, o pequeno mistério
quase se tornou um grande mistério, uma vez que era óbvio que ela jamais teria
uma resposta para essas perguntas. Nem mesmo saberia se, em vida, ele ou ela
tinha usufruído da beleza e da luz únicas daquela cidade ou se tinha vivido nos
submundos da miséria. E, é claro, ela nunca saberia se Plutão ou Vênus tinha
comandado seus atos, nem se o almutem a reger sua carta natal era Saturno. O
que significaria poder dizer se teve uma vida de guerra ou de amor, ou se
seguiu por um caminho de grandes restrições e esperas.
O Grande Mistério, no entanto,
falava a ela por questões universais. Ao ver todos aqueles ossos seis milhões
de pessoas mortas ao longo de 10 ou 13 séculos (ninguém sabe direito), ela se
perguntava: de onde elas vêm? Para onde elas vão? E depois: de onde nós viemos? Para onde nós vamos? E o que fica de tudo que
fizemos? Essas são as questões irrespondíveis. São aquelas que nunca terão
respostas.
Então, o silêncio pleno de sons
daquelas galerias e de seus crânios despidos de olhos sussurrou em seu ouvido
que visitar o reino de Hades é uma maneira de voltar a viver, apreciando o
momento, se deixando inebriar pela luz e pela beleza do mundo de Cima, lutando
para que o mundo de Cima não se torne como o mundo de Baixo, com suas perguntas
eternamente sem respostas.
Finalmente, ela voltou a subir as
galerias, se despedindo dos mortos de tantas eras. Sentiu vontade de chorar por
ter sido capaz de escutar o que eles tinham a dizer. Por ter sido capaz de
ouvir o silêncio de quem não pode mais falar de suas existências e nele
encontrar tudo que era preciso para partir com a alma agradecida.
Na saída, ela beijou seu filho,
que fizera a jornada com ela, e se dirigiram a estação Denfert-Rochereau do
metrô. Antes de mergulhar no subterrâneo trivial da estação, ela olhou para
fora. Ainda chovia e a praça era um festival de guarda-chuvas colorindo o mundo
cinza.
***
Alguns anos depois, ela foi
convidada a escrever para o Saturnália, estreando justamente em 14 de julho,
data que marca o início da Revolução Francesa. No dia anterior, Urano – o
planeta do despertar, das mudanças súbitas, das revoltas e do inesperado –
retrogradou à espera de Plutão (ou Hades, o senhor dos reinos subterrâneos),
planeta do inconsciente, da morte, da metamorfose e do poder.
Urano – que em grego significa
“céu” – foi descoberto por Sir William Herschel em 13 de março de 1781, apenas
oito anos da queda da Bastilha. E a Revolução Francesa, com todos as suas fases
e governos, se deu inteira durante o ciclo de Plutão em Aquário (signo que, na
astrologia moderna, é regido por Urano), entre 1778 e 1798. No ano seguinte, 1799, a monarquia foi
reinstalada por Napoleão Bonaparte. Portanto, os princípios universais que a
Revolução Francesa buscava – Liberdade, Fraternidade, Igualdade – continuaram
(e ainda continuam) tão longe como o Céu para os que vivem na Terra.
Ainda assim, ela se pergunta mais
uma pergunta sem resposta: o que será que estes dois planetas trarão em breve
para a humanidade? Ela se recorda das Catacumbas, que foram criadas às vésperas
da Revolução Francesa para abrigar os guerreiros mortos de tantas épocas. Ali,
Urano e Plutão já estão juntos há muito tempo.
(texto publicado originalmente no site
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