Nebulosa da Tarântula
Ele entrou pela porta da frente
ao mesmo tempo em que corri para a janela e me lancei contra a vidraça.
Enquanto flutuava lentamente no ar, junto com estilhaços de vidro e as gotas de
sangue, eu podia ver o sol alaranjando o horizonte em mais um fim de dia
enviado pelo Universo. Finalmente, meu corpo se chocou contra o topo do plátano
avermelhado, uma perna esticando-se toda diante do meu ventre, o joelho colado
na testa, a outra perna solta como boneca de pano nos galhos que me flechavam
as carnes. Meu olhar paralisado perfurava o chumbo do céu que me cobria e
riscava fogos de artifício no breu que se aproximava.
Balancei o lado esquerdo do
quadril duas, três, quatro vezes, até que meu corpo se desprendeu e caiu no
fundo da água abaixo de mim. Flutuava agora em elemento aquoso, morta como
Ofélia. Fui sendo levada até a beirada e ali o que restava das minhas roupas
rasgadas se dissolveram. Ergui-me, então, nua e deslizei para a terra firme.
Caminhei assim em meio aos vaga-lumes e os trancei nos cabelos e embebi com sua
luz minhas feridas. Foi minha primeira morte. A próxima, a definitiva, não
seria tão lúcida quanto a primeira.
***
Ninguém soube da minha segunda
morte. Ficou perdida entre as pedras e os fósseis. Os cata-ventos sussurravam
brincadeiras em meus ouvidos e retalhos de estrelas mergulhavam no fundo dos
meus olhos que nada viam. Minhas pernas tinham se tornado feixes de trigo e os
tornados acima de mim nasciam das minhas mãos de gelo. Os soldados marchavam
sobre minha ausência e toda espera era eterna. Era sempre tempo de guerra e a
morte ria um riso pesado como o peso de mil solidões.
Neste leito de chumbo, eu não
tinha mais as tranças, mas elas insistiam em derramar-se em torno de mim como
se eu ainda fosse uma menina ou uma princesa. Na minha janela subterrânea, não
havia vidraças, tampouco paisagens, menos ainda a promessa de um príncipe
encantado a me esperar no altar. Dobrei-me em duas, como se já fosse o passado
enterrado de mim mesma, suspirei e esqueci totalmente quem eu era. Para todo o
sempre.
***
Porém, em meio às minhas duas
mortes, a memória do tempo se apresentou:
“Há cinco dias, Plutão ganhou sua
quinta lua.
Há doze, encontraram o Bóson de
Higgs, a Partícula de Deus.
Há exatos 67 anos, a primeira
bomba nuclear, Trinity, foi lançada no México. Logo depois foi a vez de Little
Boy em Hiroshima e de Fat Man em Nagasaki.”
Fiquei à espera do brilho
magnífico de 60 luas cheias que emite a Nebulosa da Tarântula, mas ele não
veio. O que veio foi o sopro.
***
Eu gosto do sopro. Somos um
sopro. A vida é um sopro. A morte é um sopro. E no sopro há sempre movimento,
nenhum tédio ou terror debaixo do pó. Apenas movimento. Volutas. Redemoinhos.
Mares a varrer. Frio e calor se revezando em canais aéreos. Incenso. O trago de
um xamã. Até chegar ao espaço, onde tudo é silêncio e vislumbro, transformados
em milhões de partículas, as luzes boreais e os buracos negros. Descubro que
não vamos ao pó, mas ao fim do tempo, essa unidade ilusória que nos priva de
todos os mistérios.
***
No fim, as vozes das estrelas
cantaram para espantar toda solidão.
(Publicado originalmente no site
Saturnália Astrologia & Cidade, http://saturnalia.com.br/)
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