quinta-feira, dezembro 08, 2011

luzes acesas




The three candles, de Marc Chagall




Quando ele apareceu em meio à celebração de Rosh Hashaná, não entraram pássaros pela janela, nem coelhos saíram pela cartola.

Ele trazia nas mãos uma garrafa de vinho tinto argentino e um laço invisível – seu olhar brilhante e totalmente focado nela – que se enrolou na mulher feito serpente.

Ela tentou escapar do laço enquanto mergulhava seu coração no vinho, sem lembrar que assim ele se embriaga. Depois, usou outra estratégia: olhar para o lado e sorrir faceira para o homem jovem, bonito e moreno que, desde o início da festa, a seduzia do jeito que os meninos ainda inocentes fazem.

Mas não teve jeito. Também não teve – antes, durante ou depois – revelação, premonição, vidência, espíritos que retornam do mundo dos mortos para dizer que, um dia, um desconhecido irá chegar com uma jóia nas mãos e um cartaz dizendo: “... e viveram felizes para sempre.”

Não, não foi assim a história deles: foi mais simples, mais verdadeira e sem qualquer realismo mágico. Foi apenas a história de um homem que encontrou uma mulher e que, na pausa para o cigarro na sacada da casa de um amigo, lhe disse que nunca perdesse aquele sorriso, que agora ela trazia aberto e confiante. 

Ela se aproximou dele, ele a abraçou e, depois de alguns minutos de silêncio, sentindo o calor reconfortante um do outro através das roupas naquela noite fresca, ele a beijou muito, muito delicadamente.

Naquele instante, ela esqueceu todos os anos de silêncio. Esqueceu tudo que foi vivido e que não foi vivido durante a entressafra entre o último amor e este. Ela simplesmente acreditou nele, no calor do corpo dele, no aconchego do abraço dele, no gosto bom do beijo dele, no olhar lindo que nunca se apagava, no laço invisível que a envolvia feito serpente, mas não lhe metia medo.

Naquele instante, ela quis estar com ele a madrugada inteira. Flanaram de bar em bar, em uma conversa que não tinha fim, um jorro de confidências e histórias de duas vidas inteiras, duas longas vidas de um homem e uma mulher maduros, apesar das estrelas novas que carregavam nas almas e nas mãos.

O dia já ia nascer nublado e eles se esgueiraram pela porta do primeiro hotel barato (coincidentemente, aquele mesmo em frente à antiga sinagoga), para que a noite não acabasse e para que o desejo – uma lua crescente no ventre – não fugisse com os ruídos triviais e desarmônicos da manhã de domingo.

No quarto pequeno e escuro, os corpos se despiram. Não só das roupas, mas também da desesperança que até então lhes servia a mesa e dormia ao lado deles na cama. Eles se despiram e a nudez deles era mais bela e profunda porque carregava nela a história de cada um deles. Histórias longas de lutas, amores, dores, alegrias, filhos, livros, viagens, exílios em países distantes, exílios aqui mesmo onde estamos.

E, assim, despidos de todo enfeite inútil, de toda alegoria supérflua, de toda fantasia enganosa, o corpo dela e o corpo dele se enrolaram feito serpentes. Ela sentiu a pele dele nua contra a sua e a maciez que nela encontrou lhe vestiu a alma como uma luva delicada e se transformou em eterno céu abobadado. 

Ele sentiu, sob os cabelos longos e ruivos, na curva da nuca, o cheiro dela – e se impregnou desse perfume único e intransferível até que nunca mais pudesse lavá-lo enquanto existisse, eternamente fadado a carregar consigo a memória dela em todos os seus sentidos.

Então, eles se amaram de todas as formas, sabidas e não sabidas, meninas e adultas, frágeis e loucas, secretas e extravagantes, expulsando do quarto todos os demônios, santos, mitos e lendas. Não precisavam deles, não precisavam acreditar nas falsas promessas deles, nem em contos de fadas. 

Eles se bastavam, eram o brinquedo e a brincadeira um do outro, esconde-esconde, pega-pega, jogo de amarelinha, arcanos do tarô. Jardim das delícias ali mesmo, ao alcance das bocas e das mãos. E gozo, repetidas vezes.

Finalmente, dormiram perfeitamente encaixados um no outro: almas gêmeas siamesas separadas ao nascer, agora reencontradas.

Nas quatro semanas e meia de amor que se seguiram, foram inseparáveis. Planos para o futuro, juras de amor, riso caloroso e cúmplice, conversas infinitas, olhares amorosos de um lado a outro da mesa, mãos dadas na rua. Namorados. Namorados enamorados.

Não era preciso inventar um reino distante cheio de esplendor: o encanto estava ali mesmo, naquela cumplicidade diária dos telefonemas, das mensagens trocadas, das saídas noturnas, das conversas à mesa, do cuidado com o bem-estar um do outro, do apoio mútuo e das pequenas gentilezas. 

Tudo isso, inacreditavelmente, vinha carregado das marcas do misterioso e do surpreendente, absolutamente humanos. Uma coisa rara - uma jóia preciosa e impalpável - chamada intimidade.

Mas, um dia, tudo acabou. Ele foi escalar castelos de fumaça, caçar miragens chilenas, perseguir coelhos mágicos e pássaros distantes. Ela foi se vestir de luz prateada, pendurar estrelas nas treliças e escrever um diário invisível, em que cada letra desaparecia ao ser traçada.

Foi a incompreensível separação dos amantes. Tudo acabou. Mas o amor, não – este continua intacto e à espera em algum lugar. Quem sabe ele encontre, milagrosamente, o caminho para casa quando forem acesas as luzes de Hanucá.

(26/11/2011)

Nenhum comentário: