sexta-feira, dezembro 02, 2011

o homem dos ratos


 Foto: Ruy Lebreiro


Paris, inverno, final de tarde. Ela vinha toda apressada, mergulhada em seu casaco grosso e quente que, ainda assim, não era suficiente para afastar o frio que a circundava. Tinha nevado naquele dia, mas a neve agora eram poças d’água nas entradas do metrô. Ela pegara o caminho de volta para casa, sem a menor vontade de voltar porque a “casa” era uma prisão para sua alma.

Mas seguiu em frente, saltou na estação Miromesnil e, como todos à sua volta, desceu correndo as escadas até a linha 13 para disputar um lugar em frente à porta do trem e, depois, dentro dele. Na escadaria, ela quase tropeçou em uma mulher muçulmana, envolta no seu traje e véu negros, que pedia esmola, sempre no mesmo lugar, por horas a fio.

Os rostos ao lado dela eram os mesmos em toda parte, os mesmos do trem que pegara antes na estação Michel-Ange Auteuil até descer em Miromesnil: rostos duros, ameaçadores, gente que colou o ódio e a desconfiança no rosto e nunca mais foi capaz de desgrudá-los. Paris era, naquele momento, a cidade terrível na qual Anna Blume, estrangeira, chegara em busca do irmão em O país das últimas coisas, de Paul Auster.

Ela lera o livro em francês – Le Voyage d’Anna Blume – nos seus primeiros meses em Paris e aquela sensação de desolação, que era a alma do livro, nunca mais a abandonou. A cidade luminosa também tinha entranhada na alma uma gigantesca sombra de tensões, desprezos, crimes, conflitos, ruas escuras, corpos arruinados, espíritos destroçados, traições e mortes.

Ela olhou para o mostrador no alto à sua direita, onde podia ler o nome do trem e quantos minutos faltavam para o próximo chegar. De repente, seu olhar caiu sobre o homem de pé a seu lado. Era um homem de meia-idade, comum, cabelos castanhos claros, pele clara, alto, vestindo roupas triviais – calça jeans, sapatos de couro marrom, camisa branca, japona bege. Nada nele chamaria a atenção pela segunda vez.

Até que ela o viu. Saindo da japona, cujo zíper estava fechado até o meio do peito do homem, o rato – rato mesmo, daqueles grandes com rabo pelado e comprido – lhe escalou o ombro e se sentou ali, com seu chapeuzinho de feltro azul. Imediatamente, as pessoas em volta se afastaram do homem, embora o fizessem disfarçadamente, como se não tivessem visto o rato no ombro do homem e apenas estivessem perambulando pela estação.

Ela, não. Continuou ao lado do homem, fascinada com o inusitado da situação. Naquele momento, sentiu-se instantaneamente cúmplice daquele homem aparentemente banal que, no entanto, se movia por Paris com um rato de chapéu dentro do casaco. Olhou para o homem sorrindo delicadamente, como se dissesse que o entendia. Ele sorriu de volta, timidamente, depois de se assegurar que o olhar dela era mesmo amigável e não de repulsa. No entanto, o trem estava prestes a chegar e a estação começou a se encher de pessoas preocupadas apenas em chegar em casa após um duro dia de trabalho.

O homem, intimidado com o afluxo de gente e com os olhares de censura diante da visão do rato de chapéu azul, se afastou para o fundo da estação e se sentou em um dos bancos brancos. Ela continuava olhando-o, hipnotizada. Então, o homem pegou o rato de chapéu azul do ombro e o enfiou dentro da japona.

Naquele instante, o trem chegou e ela entrou, se postando diante da porta de vidro para prolongar mais um pouco o contato visual com o homem. Quando o trem começou a partir, o homem olhou para ela com olhos sorridentes e correu o zíper da japona para baixo. Uma cabecinha de rato, desta vez com um chapeuzinho vermelho, apareceu ao lado do rato com chapéu azul.

Ela abriu um sorriso largo para o homem, que devolveu o sorriso na mesma intensidade. Havia uma cumplicidade profunda e silenciosa entre eles. Sem se conhecerem, sem mesmo saberem o nome um do outro, eles compartilhavam um segredo. Um pequeno segredo de amor.

O trem foi se afastando e ela acenou para o homem, que lhe acenou de volta. Então, o trem entrou na escuridão do túnel e ela voltou ao mar de rostos endurecidos e hostis. Em casa, porém, deitada na cama, recordando o surpreendente encontro com o homem dos ratos, ela se sentia preenchida de alegria e de amor. E, finalmente, percebeu que Paris também podia ser mágica.

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