segunda-feira, dezembro 12, 2011

corpo fechado


Passeio Público, de Belmiro Santos


Sim. Era verdade que ela não sorria. Apenas respirava o sorriso dos outros à sua volta. Ela vivia desse roubo. Nenhum crispar, nenhum sentimento a animar-lhe a alma. Um dia, um homem sentou no banco ao seu lado no parque. Ela fora até lá ouvir os pássaros da manhã, nessa busca infindável de sentido. O homem era jovem, mas não parecia nem novo nem velho; parecia não ter idade. Respirava lentamente, olhando fixamente o céu, as nuvens acima dele. Repentinamente, os olhos se voltaram para a árvore junto a qual ela se recostara. Seu olhar foi direto dentro dos olhos dela, como um raio, uma espada, uma lâmina fina trespassando a alma escondida dentro do seu corpo fechado.

Sem entender direito o que se passava, sentindo-se ameaçada pelo invisível, ela procurou lutar no silêncio que servia de campo de batalha entre os dois. Procurou neutralizar a ameaça. Sorriu. Não um sorriso largo, mas um sorriso tímido, que foi forçado a se esboçar sutilmente no seu rosto. Um esforço enorme escondido nessa sutileza, sentido como se golpes de estilete rasgassem-lhe a boca para cima, na tentativa de vencê-la nessa luta e obter, à sua revelia, ao menos um arremedo de sorriso. Justamente um sorriso, coisa que ela nunca tivera coragem de se permitir.

O homem não se deixou enganar por esse sorriso de artimanha. Nem mesmo piscou. Seu rosto continuou com a expressão grave que apresentava desde o minuto em que a viu pela primeira vez. Seu olhar continuava sendo um raio, uma lâmina afiada, uma faca de trinchar caça. Caça assim como ela.

Ela percebeu o recado telegrafado pelo olhar cortante do homem. Sabia que ele pretendia fazê-la em pedaços, roubar dela todos os sorrisos que ela mesma roubara, até que a ela não restasse mais nada a não ser sorrir seu próprio sorriso. Aquele que ela não conhecia.

Este seria apenas o primeiro passo. Depois viriam as outras torturas, as mutilações que seriam necessárias para esculpir em seu corpo a alma que ela trancara por dentro. Ela sabia que, no dia seguinte, ele estaria ali, naquele mesmo banco, e que estaria olhando o céu novamente, como se estivesse lhe indicando algo que ela deveria descobrir, embora ela não soubesse o que havia a ser descoberto nas nuvens e no azul profundo do céu.

Então, ela se levantou, tomando coragem para passar diante do banco no qual ele permanecia duro e empertigado, com seu olhar atroz e, ao mesmo tempo, irrecusável. De repente, algo cedeu na sua concha, uma quebra, uma rachadura, uma fresta. Um arrepio de medo perpassou-lhe a espinha e o livro que segurava nas mãos caiu no chão, diante dele.

Sem olhar para trás, ela seguiu em frente, no mesmo passo controlado com o qual procurava evitar que ele conhecesse o abalo sísmico que criara no seu centro. Ele recolheu o livro e, sem mesmo olhar o título, levantou os olhos para o céu e estendeu as pernas para a frente, cruzando-as na altura dos tornozelos. A mão direita, autônoma, escondeu o livro no bolso do seu sobretudo, enquanto o homem continuava a olhar o céu distraidamente.

No outro lado do parque, ela seguiu seu caminho. Não estava mais preocupada. Sabia que era tarde para isso. Sabia que ela estaria ali na manhã seguinte, que ele estaria ali na manhã seguinte. Sabia que o seu corpo e o seu ser inteiro seriam atravessados pelos golpes invisíveis e silenciosos da faca de trinchar a caça. Sabia que, depois de ser cortada em mil pedaços, seria devorada. E finalmente, renasceria. Sem concha. Só ela, a parte verdadeira e ainda oculta dela. A única parte que tinha importância. A única que era totalmente ela. Sua essência. Aquela que ela mesma não conhecia. Quem sabe ele até lhe devolveria o livro... Nesse momento, ela sorriu. Ela. Pela primeira vez em toda a sua vida.

(Passeio Público, Curitiba, inverno de 1985)

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