The three candles, de Marc Chagall
Quando ele apareceu em meio à celebração de Rosh Hashaná, não entraram pássaros pela janela, nem coelhos saíram pela cartola.
Ele trazia nas mãos uma garrafa
de vinho tinto argentino e um laço invisível – seu olhar brilhante e totalmente
focado nela – que se enrolou na mulher feito serpente.
Ela tentou escapar do laço
enquanto mergulhava seu coração no vinho, sem lembrar que assim ele se
embriaga. Depois, usou outra estratégia: olhar para o lado e sorrir faceira
para o homem jovem, bonito e moreno que, desde o início da festa, a seduzia do
jeito que os meninos ainda inocentes fazem.
Mas não teve jeito. Também não
teve – antes, durante ou depois – revelação, premonição, vidência, espíritos
que retornam do mundo dos mortos para dizer que, um dia, um desconhecido irá
chegar com uma jóia nas mãos e um cartaz dizendo: “... e viveram felizes para
sempre.”
Não, não foi assim a história
deles: foi mais simples, mais verdadeira e sem qualquer realismo mágico. Foi
apenas a história de um homem que encontrou uma mulher e que, na pausa para o
cigarro na sacada da casa de um amigo, lhe disse que nunca perdesse aquele
sorriso, que agora ela trazia aberto e confiante.
Ela se aproximou dele, ele a
abraçou e, depois de alguns minutos de silêncio, sentindo o calor reconfortante
um do outro através das roupas naquela noite fresca, ele a beijou muito, muito
delicadamente.
Naquele instante, ela esqueceu
todos os anos de silêncio. Esqueceu tudo que foi vivido e que não foi vivido
durante a entressafra entre o último amor e este. Ela simplesmente acreditou
nele, no calor do corpo dele, no aconchego do abraço dele, no gosto bom do
beijo dele, no olhar lindo que nunca se apagava, no laço invisível que a
envolvia feito serpente, mas não lhe metia medo.
Naquele instante, ela quis estar
com ele a madrugada inteira. Flanaram de bar em bar, em uma conversa que não
tinha fim, um jorro de confidências e histórias de duas vidas inteiras, duas
longas vidas de um homem e uma mulher maduros, apesar das estrelas novas que
carregavam nas almas e nas mãos.
O dia já ia nascer nublado e eles
se esgueiraram pela porta do primeiro hotel barato (coincidentemente, aquele mesmo em frente à antiga sinagoga), para que a noite não
acabasse e para que o desejo – uma lua crescente no ventre – não fugisse com os
ruídos triviais e desarmônicos da manhã de domingo.
No quarto pequeno e escuro, os
corpos se despiram. Não só das roupas, mas também da desesperança que até então
lhes servia a mesa e dormia ao lado deles na cama. Eles se despiram e a nudez
deles era mais bela e profunda porque carregava nela a história de cada um
deles. Histórias longas de lutas, amores, dores, alegrias, filhos, livros, viagens,
exílios em países distantes, exílios aqui mesmo onde estamos.
E, assim, despidos de todo
enfeite inútil, de toda alegoria supérflua, de toda fantasia enganosa, o corpo
dela e o corpo dele se enrolaram feito serpentes. Ela sentiu a pele dele nua contra
a sua e a maciez que nela encontrou lhe vestiu a alma como uma luva delicada e se
transformou em eterno céu abobadado.
Ele sentiu, sob os cabelos longos e
ruivos, na curva da nuca, o cheiro dela – e se impregnou desse perfume único e intransferível até que
nunca mais pudesse lavá-lo enquanto existisse, eternamente fadado a
carregar consigo a memória dela em todos os seus sentidos.
Então, eles se amaram de todas as
formas, sabidas e não sabidas, meninas e adultas, frágeis e loucas, secretas e extravagantes,
expulsando do quarto todos os demônios, santos, mitos e lendas. Não precisavam
deles, não precisavam acreditar nas falsas promessas deles, nem em contos de
fadas.
Eles se bastavam, eram o brinquedo e a brincadeira um do outro, esconde-esconde,
pega-pega, jogo de amarelinha, arcanos do tarô. Jardim das delícias ali mesmo, ao alcance das bocas e das mãos. E gozo, repetidas vezes.
Finalmente, dormiram
perfeitamente encaixados um no outro: almas gêmeas siamesas separadas ao nascer, agora reencontradas.
Nas quatro semanas e meia de amor
que se seguiram, foram inseparáveis. Planos para o futuro, juras de amor, riso
caloroso e cúmplice, conversas infinitas, olhares amorosos de um lado a outro
da mesa, mãos dadas na rua. Namorados. Namorados enamorados.
Não era preciso inventar um reino
distante cheio de esplendor: o encanto estava ali mesmo, naquela cumplicidade
diária dos telefonemas, das mensagens trocadas, das saídas noturnas, das
conversas à mesa, do cuidado com o bem-estar um do outro, do apoio mútuo e das
pequenas gentilezas.
Tudo isso, inacreditavelmente, vinha carregado das marcas
do misterioso e do surpreendente, absolutamente humanos. Uma coisa rara - uma jóia preciosa e impalpável - chamada
intimidade.
Mas, um dia, tudo acabou. Ele
foi escalar castelos de fumaça, caçar miragens chilenas, perseguir coelhos mágicos e pássaros distantes. Ela foi se vestir de luz prateada, pendurar estrelas
nas treliças e escrever um diário invisível, em que cada letra desaparecia ao ser traçada.
Foi a incompreensível separação dos amantes. Tudo acabou. Mas o amor, não –
este continua intacto e à espera em algum lugar. Quem sabe ele encontre, milagrosamente, o caminho para casa quando forem acesas as luzes de Hanucá.
(26/11/2011)
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