Magritte, The lovers
Para Jai, no dia de seu aniversário
Era domingo. O dia esvaziava como sonho. O céu abria seus poros azuis manchados de dourado. Diante da janela, a mulher de olhos longínquos trazia ancorado no peito nu o retrato.
O retrato sem moldura dardejava no tempo, fazendo curvas
para o adeus. Do fundo do retrato, escapavam dois olhos amados, olhos de
aventureiro que um dia estará morto. Ela, a mulher de olhos longínquos e peito
nu, acariciava os olhos celestes com seu próprio olhar de maresia. Na mistura
dos azuis, escorregava o olhar acetinado de folhas frescas que ela lançava ao
rosto resoluto.
E, então, ela se lançou na cama com cheiro de fadas e
alfazema, espalhando a cabeleira ruiva sobre os travesseiros e sobre o quarto
inteiro. Com o retrato colado no peito, ela sonhava sonhos de outro tempo, com
os olhos abertos e as pernas também.
As mãos de feiticeira deixavam o retrato e acendiam a
fogueira, com a lembrança do corpo branco e morno do estrangeiro. Pequena sob o
peso dele, do estrangeiro de língua estranha e quente, ela se contorcia em
ondas delirantes. Ele, o estrangeiro, respirava na curva do pescoço dela, um
sopro sanguíneo se debatendo nas veias abertas desse amor fugaz, até explodir
em espasmos brancos no ventre dela.
Com as pernas enganchadas no corpo do amado estranho,
estrangeiro, ela se debatia entre a entrega e a fuga. Menina de si mesma,
pressentia a partida do homem que se tornara amigo, amante, pai, filho, tudo ao
mesmo tempo porque precisava ser tudo para ser inteiro.
Mas, antes de partir, o estrangeiro de olhos celestes lhe
contou todas as histórias já vividas e inventou outras mais, apenas para vê-la
sorrir com a alma ardente. E ardente também ele a queria quando mais uma vez
brincou com as mãos grandes entre as pernas dela, só para ouvi-la gemendo em
seu silêncio absoluto.
Eles brincaram outras vezes assim, trocaram confidências de
vidas passadas, se embebedaram de vodka muito longe da Rússia, mas sem querer
trouxeram na bagagem a foice e o martelo. Uma noite, o vinho transbordou das
veias, das bocas e dos olhos e pintou o quarto todo de vermelho sangue. Ela se
deitou em meio a todos os pedaços do seu amor destroçado e, lentamente, dormiu
o sono triste dos apaixonados.
Ao acordar, só havia o retrato do estrangeiro de olhar
celeste. Ela o talhou no peito como tatuagem, para nunca mais se esquecer da
paixão. Ela foi até a janela, os seios nus contra a vidraça. No céu, os poros
azuis manchados de dourado. O silêncio de um dia esvaziado como um sonho. Era
domingo.
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