Foto: Ruy Lebreiro
Paris, inverno, final de tarde.
Ela vinha toda apressada, mergulhada em seu casaco grosso e quente que, ainda
assim, não era suficiente para afastar o frio que a circundava. Tinha nevado
naquele dia, mas a neve agora eram poças d’água nas entradas do metrô. Ela
pegara o caminho de volta para casa, sem a menor vontade de voltar porque a
“casa” era uma prisão para sua alma.
Mas seguiu em frente, saltou na
estação Miromesnil e, como todos à sua volta, desceu correndo as escadas até a
linha 13 para disputar um lugar em frente à porta do trem e, depois, dentro
dele. Na escadaria, ela quase tropeçou em uma mulher muçulmana, envolta no seu
traje e véu negros, que pedia esmola, sempre no mesmo lugar, por horas a fio.
Os rostos ao lado dela eram
os mesmos em toda parte, os mesmos do trem que pegara antes na estação Michel-Ange
Auteuil até descer em Miromesnil: rostos duros, ameaçadores, gente que colou o
ódio e a desconfiança no rosto e nunca mais foi capaz de desgrudá-los. Paris
era, naquele momento, a cidade terrível na qual Anna Blume, estrangeira,
chegara em busca do irmão em O país das
últimas coisas, de Paul Auster.
Ela lera o livro em francês – Le Voyage d’Anna Blume – nos seus
primeiros meses em Paris e aquela sensação de desolação, que era a alma do
livro, nunca mais a abandonou. A cidade luminosa também tinha entranhada na
alma uma gigantesca sombra de tensões, desprezos, crimes, conflitos, ruas
escuras, corpos arruinados, espíritos destroçados, traições e mortes.
Ela olhou para o mostrador no alto
à sua direita, onde podia ler o nome do trem e quantos minutos faltavam para o
próximo chegar. De repente, seu olhar caiu sobre o homem de pé a seu lado. Era
um homem de meia-idade, comum, cabelos castanhos claros, pele clara, alto,
vestindo roupas triviais – calça jeans, sapatos de couro marrom, camisa branca,
japona bege. Nada nele chamaria a atenção pela segunda vez.
Até que ela o viu. Saindo da
japona, cujo zíper estava fechado até o meio do peito do homem, o rato – rato
mesmo, daqueles grandes com rabo pelado e comprido – lhe escalou o ombro e
se sentou ali, com seu chapeuzinho de feltro azul. Imediatamente, as pessoas em
volta se afastaram do homem, embora o fizessem disfarçadamente, como se não
tivessem visto o rato no ombro do homem e apenas estivessem perambulando pela
estação.
Ela, não. Continuou ao lado do
homem, fascinada com o inusitado da situação. Naquele momento, sentiu-se
instantaneamente cúmplice daquele homem aparentemente banal que, no entanto, se
movia por Paris com um rato de chapéu dentro do casaco. Olhou para o homem
sorrindo delicadamente, como se dissesse que o entendia. Ele sorriu de volta,
timidamente, depois de se assegurar que o olhar dela era mesmo amigável e não
de repulsa. No entanto, o trem estava prestes a chegar e a estação começou a se
encher de pessoas preocupadas apenas em chegar em casa após um duro dia de
trabalho.
O homem, intimidado com o afluxo
de gente e com os olhares de censura diante da visão do rato de chapéu azul, se
afastou para o fundo da estação e se sentou em um dos bancos brancos. Ela
continuava olhando-o, hipnotizada. Então, o homem pegou o rato de chapéu azul
do ombro e o enfiou dentro da japona.
Naquele instante, o trem chegou e
ela entrou, se postando diante da porta de vidro para prolongar mais um pouco o
contato visual com o homem. Quando o trem começou a partir, o homem olhou para
ela com olhos sorridentes e correu o zíper da japona para baixo. Uma cabecinha
de rato, desta vez com um chapeuzinho vermelho, apareceu ao lado do rato com
chapéu azul.
Ela abriu um sorriso largo para o
homem, que devolveu o sorriso na mesma intensidade. Havia uma cumplicidade
profunda e silenciosa entre eles. Sem se conhecerem, sem mesmo saberem o nome
um do outro, eles compartilhavam um segredo. Um pequeno segredo de amor.
O trem foi se afastando e ela
acenou para o homem, que lhe acenou de volta. Então, o trem entrou na escuridão
do túnel e ela voltou ao mar de rostos endurecidos e hostis. Em casa, porém,
deitada na cama, recordando o surpreendente encontro com o homem dos ratos, ela
se sentia preenchida de alegria e de amor. E, finalmente, percebeu que Paris
também podia ser mágica.
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